Mariana: A senhora que se segue

Aos 36 anos, a até aqui deputada Mariana Mortágua assume as rédeas do partido com o objetivo ‘a luta pela vida boa’, em que a habitação aparece como a prioridade do partido.

Mariana: A senhora que se segue

Sai Catarina Martins, entra Mariana Mortágua. É a nova coordenadora do Bloco de Esquerda, com um novo slogan: ‘Vida boa’, e com a ambição de voltar a ser a terceira força política nacional, após o resultado desastroso das últimas eleições (o BE passou de 19 para apenas cinco deputados). Ao Nascer do SOL, os politólogos acenam com uma liderança de continuidade, apesar de reconhecerem no discurso de Mortágua algumas novidades, como a habitação em prioridade, mas acreditam que uma recuperação eleitoral do Bloco só poderá ser feita à custa do PS e do PCP.

A especialista em ciência política Paula Espírito Santo enfatiza que Mariana Mortágua «é uma pessoa do aparelho e acaba por estar dentro de toda a estratégia que o Bloco desenvolveu, até mesmo para esta legislatura, que foi acordada por todos os membros da direção». Ainda assim, admite que o novo rosto tem «as suas próprias idiossincrasias», por ser formada em economia e por estar associada aos assuntos e aos grandes dossiês de economia (e da banca). «É aí que pode haver a expectativa de uma maior incidência em assuntos com incidência fiscal e financeira, não invalidando, no entanto, toda a política e toda a estratégia ligada às grandes bandeiras do partido: os direitos das minorias, os aspetos ambientais, sociais e cívicos». Em suma: «Podemos esperar essa continuidade, mas com algum detalhe mais acentuado no plano económico».

Também para José Filipe Pinto, a chegada de Mortágua a coordenadora do partido é feita «através de um processo de sucessão anunciada, que contou com o apoio não só da esmagadora maioria dos delegados, mas também da líder cessante, Catarina Martins, e dos pais fundadores do partido referidos por um deles, Fernando Rosas, como a sua infantaria». O politólogo acrescenta que «este apoio decorre, sobretudo, da sua presença assídua no espaço mediático e da imagem de rigor que construiu enquanto deputada, sobretudo no que concerne à sua participação nas comissões parlamentares de inquérito». Para rematar: «Será caso para dizer que o Bloco concedeu uma espécie de estágio a Mariana Mortágua e como o resultado foi positivo, aposta na sua combatividade como energia renovadora».

 

Populismo ou nem por isso?

No seu discurso de vitória ­ – na Convenção realizada este domingo conseguiu arrecadar 67 dos 80 mandatos no órgão máximo –, Mariana Mortágua afirmou estar preparada para «resgatar o país deste jogo vicioso» que atribuiu à maioria absoluta do PS, assumindo que o compromisso do partido será «a luta pela vida boa», vida essa «que não seja consumida pelo esforço inglório do mínimo dos mínimos, que é ter uma casa, um salário decente, cuidados na doença, quando tivermos filhos, quando a idade pesar aos nossos pais»

E é neste campo que Paula Espírito Santo aponta para diferenças de discurso em relação a Catarina Martins. «Há uma retórica muito mais enfática e muito mais agressiva, acabando por por ser mais assertiva em relação ao trabalho desenvolvido pelo Governo», afastando, no entanto, a ideia de populismo. «Não podemos dizer sempre que há uma assertividade que é populismo. É um estilo de comunicação muito mais simples, mais baseado na factualidade e em aspetos concretos, assim como em soluções para as quais o Bloco pretende ser alternativa», refere.

Já em relação ao lema da nova coordenadora – que assenta em duas ideias-chave: levar o país a sério e lutar pela vida boa –, José Filipe Pinto acredita que a sua estratégia passará por aquelas que têm constituído as principais bandeiras do BE, designadamente: a aposta na valorização da escola pública, a revitalização do Serviço Nacional de Saúde, a alteração das leis laborais no sentido do combate à precariedade e aos baixos salários e a proteção às minorias, imigrantes e refugiados. «Além disso, continuará a cultivar a imagem de defensora intransigente do interesse público e trará para o plano da discussão pública todos os assuntos suscetíveis de serem classificados como fraturantes ou que contribuam para delapidar a imagem do Governo».

 

O desafio: reconquistar peso

Para o especialista, apesar do seu discurso de tomada de posse «identificar as sementes de ódio do populismo de direita como o principal inimigo», Mariana Mortágua deixou implícito que a recuperação eleitoral do BE será o seu principal desafio, e terá de ser feita à custa do PS e do PCP.  «Daí a atitude muito crítica da atuação do Governo de António Costa e também, por isso, a manifestação do desejo de cavalgar a onda de insatisfação da rua», argumenta, deixando um alerta: «Se a isso for adicionado o ativo que o BE reivindica relativamente à sua participação na geringonça, torna-se difícil acreditar que a estratégia de Mariana Mortágua passe por um relacionamento potencializador da formação de um projeto da responsabilidade de uma maioria de esquerda que inclua o Bloco. Aliás, o discurso é marcado por inegáveis marcas utópicas, pois Mariana Mortágua apresenta-se como a condutora do novo projeto».

José Filipe Pinto lembra ainda que a nova coordenadora recebe o partido «numa situação quase dramática», porque a perda de mais de metade do eleitorado em 2022 tem «inevitáveis reflexos negativos nos cofres do partido e que levou à dispensa de um número significativo de funcionários e de prestadores de serviços e à dificuldade sentida na campanha para angariar os fundos necessários para a realização da Convenção» e dá como o exemplo o valor gasto, em 2006, quando pagou 66.948,06 euros relativos à candidatura de Francisco Louçã.

 

Prova de fogo

As próximas eleições europeias são para Paula Espírito Santo a grande prova de fogo do partido, referindo que a competitividade é muito maior à esquerda. «Temos o Livre numa fase ascendente ou de afirmação. Temos o PS com a maioria absoluta, que vai continuar com a sua caminhada, não de crescimento porque é difícil mas de afirmação política. E depois temos ainda aqueles eleitores que são voláteis que transitam entre esquerda e direita, particularmente entre PS e PSD e que podem também expressar os votos não só no plano da esquerda, mas também à direita».

A politóloga diz ainda que é neste campo que a nova liderança do Bloco tem de se movimentar e que, desta vez, não vai poder contar com uma grande justificação para perdas eleitorais significativas, como houve neste último ato eleitoral, depois do chumbo do Orçamento de Estado, o que provocou eleições antecipadas. «Esse vai ser um aspeto importante e vai pôr à prova a sua capacidade de liderança, de resistência política e de crescimento».

Sendo certo que Marisa Martins não avançará para mais um mandato nas próximas eleições, a especialista lembra que «certamente não faltarão figuras de proa no Bloco de Esquerda que poderão avançar». A começar pela coordenadora cessante, Catarina Martins, cujo nome é cada vez mais falado como mais provável cabeça de lista dos bloquistas nas eleições de junho de 2024. Como, aliás, é também o nome inisistentemente apontado para as presidenciais de 2026 – recorde-se que Marisa Matias, eurodeputada, foi a candidata do BE_nas duas últimas presidenciais, ambas ganhas por Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016 e em 2021.

Já em relação ao facto de a escolha da sucessora de Catarina Martins ter recaído num nome com notoriedade, ao contrário do que aconteceu com o PCP, em que Jerónimo de Sousa foi substituído pelo então anónimo Paulo Raimundo, Paula Espírito Santo acena com lógicas partidárias que apostam em bases diferentes do ponto de vista daquilo que é o funcionamento interno do próprio partido. «O PCP funciona com um aparelho muito forte interno, em que as figuras não são tão relevantes, o que é importante é o comité central como grande decisor coletivo. O Bloco já é um partido com uma base coletiva e muito enraizado nos estilos de liderança. Teve Francisco Louçã que foi uma figura notável, mais tarde contou com a liderança bicéfala de Catarina Martins e de João Semedo, mas são sempre figuras de proa. Ao contrário do PCP, em que há um Comité Central importante, que toma decisões que normalmente até são unânimes, que não passam pela figura central, em que o líder acaba por permanecer anos a fio, o que lhe permite ganhar notoriedade por essa permanência no espaço público».