5G. China de fora?

Sem nunca referir a China, as recomendações do Conselho Superior de Segurança assentam que nem uma luva na Huawei. Portugal pode ser mais um país a banir a empresa chinesa, mas pouco foi esclarecido. E as consequências podem ser pesadas.

A bomba foi lançada, mas passou um pouco despercebida: o Governo português está a preparar-se para proibir o acesso das empresas chinesas às redes de comunicação 5G. Ainda não é certo, uma vez que o Estado português não se pronunciou oficialmente. Mas em causa está a recomendação do Conselho Superior de Segurança do Ciberespaço favorável à proibição das operadoras de adquirirem equipamentos 5G de fabricantes sediados fora da União Europeia ou de países que não fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) ou da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Apesar de em lugar algum ser feita expressa referência à China – ou à Huawei, em concreto -, as recomendações levam a essa inevitável conclusão. de facto, segundo pode ler-se na deliberação que a entidade subscritora alerta para o «alto risco para a segurança das redes e serviços nacionais decorrentes da implementação e uso da tecnologia 5G, a utilização de equipamentos e serviços que provenham de fornecedor ou prestador que preencha» um ou vários critérios, nomeadamente destacado-se o facto de quando o «ordenamento jurídico do país em que está domiciliado ou ao qual está, de qualquer outra forma relevante, vinculado, permite que o Governo exerça controlo, interferência ou pressão sobre as suas atividades a operar em países terceiros» – o que obviamente remete para a China.

A organização adverte ainda para países que não dispõem «de legislação ou de acordos diplomáticos com Portugal ou com a UE em matéria de proteção de dados, ou de cibersegurança, ou de proteção de propriedade intelectual».

Além disso, considerou também como de alto risco países reconhecidos por Portugal, UE ou OTAN (NATO) como responsáveis «por ações hostis à segurança e defesa nacional de Portugal ou dos seus aliados, designadamente atos de espionagem ou de sabotagem», entre outros.

Se o Governo de António Costa seguir a recomendação do Conselho Superior de Segurança do Ciberespaço, Portugal segue o mesmo caminho que países como Reino Unido, Dinamarca, Suécia, Estónia, Letónia e Lituânia – que já bloquearam a Huawei das suas infraestruturas de rede 5G. Já a Alemanha anunciou este ano que está a reavaliar o uso de componentes chinesas na sua rede 5G e a investigar se será necessário avançar com uma alteração legislativa. A decisão será controversa para Portugal, atendendo às boas relações com as empresas de tecnologia da China, que já vêm de há anos, sendo que há várias companhias portuguesas de telecomunicações que utilizam componentes da Huawei (como a Altice, a NOS ou a Vodafone).

A própria Huawei já reagiu e disse que «não teve conhecimento prévio desta publicação e está a procurar reunir mais informação junto das autoridades competentes, relativamente à natureza desta avaliação».

Entretanto, soube-se que as autoridades chinesas ficaram «perplexas» com a possinilidade de  Portugal afastar a tecnológica Huawei da rede de 5G nacional, admitindo-se retaliações no investimento. E recorde-se que o investimento chinês em Portugal abrange setores fundamentais, como a energia, a saúde ou a área dos seguros.

Facto relevante para Pequim é que ainda muito recentemente (no início de maio) um dos mais altos representantes da China – o vice-presidente Han Zheng –  visitou Portugal e foi recebido tanto pelo Presidente Marcelo em Belém como por António Costa em S. Bento, e não lhe foi transmitida qualquer reserva às empresas chinesas, antes pelo contrário.

Sendo que a uma decisão nesse sentido, induziria a leitura de que o Governo português estaria a ceder à pressão dos parceiros europeus e americano, depois da também recente passagem do secretário-geral da NATO por Lisboa, permitindo outras interpretações, até relacionadas com o eventual interesse do primeiro-ministro português numa próxima candidatura a um cargo em Bruxelas. Além de que, por outro lado, Portugal foi ainda há tão pouco tempo desconsiderado pelos parceiros americanos na corrida à presidência da Organização Internacional para as Migrações,tendo António Vitorino sido obrigado a desistir. 

 

Dúvidas e questões no ar

Uma das principais dúvidas que a recomendação do COnselho Superior para a Segurança do Ciberespaço levanta tem a ver com o facto de apenas falar na rede móvel, uma vez que os riscos de espionagem também se aplicam à rede fixa.

Nos bastidores, questiona-se também o porquê de esta decisão não ter sido tomada e divulgada antes, uma vez que o leilão já foi feito e todas as operadoras já pagaram os seus programas de investimento. Sendo que nesta altura as empresas já têm o seu plano de investimento aprovado e inclusivamente já fizeram compras à Huawei. O que farão agora?

«Mudar tudo implica ir a todas as instalações, todas as antenas, desfazer o que está feito e fazer de novo. Durante algum tempo ir acertando a comunicação de uma antena com a outra. Desfazer as antenas que há no país dá problemas ou de qualidade de serviço e isso não foi acautelado», lembra um especialista do setor. E acusa: «As análises de segurança têm que ser feitas a tempo e horas e não podem ser feitas como se tivessem sido feitas a tempo e horas. Tem que haver o mínimo de respeito pelo investimento que é feito pelas empresas e pelo prazo. Estas empresas todas – NOS, Vodafone e MEO – fizeram o processo de implementação do 5G com prazos e se não os cumprissem pagavam multa».

Nos outros países que já deliberaram sobre este sensível tema, há algumas diferenças, como mostra o gráfico sobre as ‘famílias’ de riscos considerados crítico ou não críticos. Rádio de acesso, transporte, core, banir ou não a Huawei da rede, é o que se vê. Incluindo dois países que consideram tudo crítico: Bélgica e Suécia. 

Agora, se a decisão governamental seguir a recomendação, Portugal coloca-se a par destes últimos. «Tomámos a decisão mais radical contra um conjunto de países com quem temos relações comerciais», diz o mesmo especialista do setor.

 

Quando o Governo defendeu a Huawei

É preciso recuar no tempo, a 2019 mais concretamente, para recordar que o primeiro-ministro, António Costa, recusou «protecionismos» em relação aos investimentos chineses no país, tendo até destacado que «países exigentes» como o Reino Unido e a Alemanha aceitaram o fornecimento de equipamentos pela chinesa Huawei para as redes 5 e 5G. «Deste lado, ninguém defende a quebra de segurança. O que não aceito é que, a pretexto segurança, se introduzam mecanismos de protecionismo que desfavorecem as condições de contratação dos países que têm de contratar a sua modernização tecnológica», chegou a dizer.

Não muito depois, o então ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos disse que o que o Governo iria fazer era «seguir as orientações europeias» «E não temos a priori nenhuma questão com nenhum fabricante. As questões de segurança são fundamentais para o Governo português seja quem for o fornecedor», afirmou Pedro Nuno Santos, mesmo depois de as operadoras NOS, Altice e Vodafone terem dito que não usarão a tecnologia da Huawei nas suas redes core de 5G.

Além disso, é preciso lembrar que a Altice assinou com a Huawei, no final de 2018, um acordo para o desenvolvimento da tecnologia 5G. O documento, assinado pelo então presidente executivo da Altice, Alexandre Fonseca, e pelo presidente da Huawei Portugal, Chris Lu, tinha como objetivo  «acelerar o desenvolvimento e capacitação da rede 5G em Portugal, de modo a permitir um aumento qualitativo do acesso à rede de banda larga móvel e comunicações com maior fiabilidade». 

 

Uma mão cheia de dúvidas

Ao Nascer do SOL, Rui Luís Aguiar, professor da Universidade de Aveiro e especialista neste setor, diz estar a acompanhar este processo que o deixa «perplexo» por não compreender os detalhes: «Aquilo que é conhecido é uma deliberação que identifica algumas políticas mas, como todas as políticas, são detalhes de recomendação que importam. E ainda não vi esses detalhes serem públicos e assim torna-se difícil comentar. Acho que a esse nível isso pode comentar-se que seria desejável que um processo com esta complexidade e com esta relevância para o país que não suscitasse perplexidades pela fraca informação que existe».

E, devido à falta de informação, deixa algumas interrogações: «A pergunta que faço é o que eles justificam? Dizem que há um conjunto de políticas que vão implementar. Boa. E agora? O que é que isso vai dar? O importante não é a grande política. O importante é o ‘e agora?’». E lembra que não é só na China que se podem comprar equipamentos. Mas também não entende que tipo de equipamentos. «E estamos a falar de equipamento feito ou equipamento de empresas? Há muito equipamento ocidental que é feito na China. E se as frases fossem de um político, compreenderia. Mas as frases vieram de uma comissão de avaliação técnica», atira, dando o exemplo da set box que todos têm em casa. «Há muitas chinesas. É para remover isso? Não estou sequer a fazer um juízo de valor sobre o que querem fazer. Há um conjunto de equipamento de fibra ótica. É para remover isso? É o tipo de perguntas que levanto».

Por isso, o professor acha que o entendimento revelado deveria ser mais específico. «Falei há pouco do equipamento de fibra ótica. São caixas que entra luz de um lado e sai luzinha do outro. Não se faz nada àquilo? É para remover essas caixas? Os telemóveis chineses são para ser excluídos? Os sítios mais fáceis para espiar as pessoas são nos telemóveis, não são nos equipamentos de rede. O TikTok vai ser proibido em Portugal?».

Uma mão cheia de questões que, para já , não estão resolvidas. Rui Luís Aguiar usa uma suposição com a Huawei por ser o nome que mais se fala. «Não podemos confiar neles, supomos. Então vamos remover a Huawei. E vamos pôr de quem? Os outros fabricantes estão cientes de quais vão ser as consequências para eles a esse nível? E quem vai pagar?», questiona. E termina: «A coisa mais clara que se pode dizer sobre este processo é que este processo não está claro. Seria bom que as coisas fossem mais claras, está na altura de serem».