O ovo no dito cujo da galinha

O concurso para médicos de família foi um copo meio cheio e meio vazio, mesmo que para o ministro tenha transbordado.

Manuel Pizarro foi chamado a substituir Marta Temido no Governo de António Costa porque ficou claro para toda a gente, incluindo no partido que reclama a paternidade do Serviço Nacional de Saúde e sobretudo para António Costa, que a cegueira ideológica estava a matar o SNS e a capacidade de resposta do Estado até na prestação dos cuidados mais básicos e elementares.

Foram demasiados anos de desinvestimento e de deficiente gestão dos dinheiros públicos, para além de se terem ultrapassado todos os limites razoáveis de dívida acumulada.

E o fim das parcerias público-privadas (PPP) em hospitais cuja gestão privada se revelou um sucesso – ou, pelo menos, com uma eficácia incomparavelmente maior do que com gestão pública – foi um erro crasso e dificilmente remediável no curto prazo.

Como se tornou evidente, a solução tem de passar por uma maior interação e coordenação dos três setores da Saúde em Portugal: público, privado e social.

A chamada de António Araújo para a estrutura executiva de administração e reestruturação do sistema de saúde foi uma boa notícia, atenta a experiência do clínico e os resultados que as suas equipas sempre apresentaram.

Agora, nem António Araújo faz milagres, nem a reforma ou reestruturação do SNS cai do céu.

Atente-se ao que se passou com o recente concurso para médicos especialistas em medicina geral. Há muito que se punha em causa a estratégia do Governo e da Administração da Saúde de só abrir parte das vagas para médicos de família, numa tentativa de ‘empurrar’ os clínicos para as zonas onde as necessidades eram mais prementes. O que se traduzia, em muitos casos, no desinteresse dos médicos e na  deserção do concurso.

 

O facto de o Governo, desta feita, ter aberto todas as vagas a concurso foi, por isso, positivo e atraiu, logicamente, mais clínicos.

Ouvindo os dois lados (médicos e administração da Saúde), dir-se-á que temos um copo meio vazio ou meio cheio, respetivamente para uns e para outros.

O ministro Manuel Pizarro transbordou mesmo de contentamento, ao classificar o concurso como «um enorme sucesso».

António Arnaut deve dar voltas e mais voltas no túmulo só de o ouvir.

A verdade é que, feito o balanço, volvidos sete anos de Governo socialista, vai continuar a haver mais de um milhão de portugueses sem médico de família.

Até porque, tirando o facto de ter levado a concurso a totalidade das vagas no país, nada mudou para tornar o SNS mais atrativo para os profissionais de saúde mais qualificados.

 

Como tem vindo a perceber-se, entre os mais novos, havendo a possibilidade ou oportunidade de exercerem a sua profissão no estrangeiro – com condições e remunerações sem qualquer tipo de paralelo em Portugal -, já nem sequer há hesitação. Vão e logo se vê se algum dia voltarão ainda em tempo ainda de exercer.

E com um número muito significativo de médicos que atingiram e estão a atingir a idade da aposentação, o problema é real, grave e não se resolve sem medidas e incentivos concretos.

Não é por acaso que a falta de médicos é mais sentida em Lisboa e Vale do Tejo – a carga de trabalho é obviamente maior, com a concentração da população e, logo, do número de utentes abrangidos, e o vencimento não dá para as despesas, se a compra de casa já se vai tornando quase impossível, os preços das rendas são o que são, além do custo de vida em todas as outras vertentes.

Para os jovens, o SNS não dá perspetiva de grande futuro, se é que podem sequer equacionar a hipótese de sair de casa dos pais ou de constituir família.

Não vale a pena encher a boca com a necessidade ou o objetivo de reter os jovens mais qualificados. 

Há, sim, que reunir as condições para o fazer. Sobretudo nas áreas em que o Estado não está manifestamente a cumprir a sua função. Sendo que a Saúde é apenas uma delas.

 

Há uma coisa que é certa, a vaga de médicos em idade de aposentação ou a lá chegar vai ter o seu termo. Nessa altura, se as universidades continuarem a debitar um cada vez maior número de médicos formados, talvez o problema menorize: quanto maior for a oferta e menor a exigência…

Aí, o problema da falta de médicos de família talvez se resolva. Poderá é passar a haver outro, não menos tranquilizador nem de mais fácil resolução, antes pelo contrário.

E na sociedade doente dos tempos que atravessamos, um médico de família qualificado, com vocação e sem constrangimentos de tempo, é absolutamente essencial para a Saúde pública aos mais variados níveis.

É por isso que há que atalhar caminho e não ficar somente à espera do ovo no dito cujo da galinha.