Surriento. E tu dizes:«Io parto, addio!»

É uma das canções napolitanas mais famosas de todos os tempos e diz-se que foi composta a pedido: Guglielmo Tramontano, o presidente da cidade, convenceu o seu grande amigo Giambattista De Curtis a escrevê-la a meias com o irmão Ernesto em honra do primeiro-ministro Giuseppe Zanardelli que estava de visita. Há mais de 120 anos.

SURRIENTO – Chamem-lhe Sorrento, se quiserem, que também serve. A língua napolitana é do arco da velha e percebê-la não é fácil, nem falada nem escrita. E, assim sendo, temos sempre duas versões de determinadas expressões determinantemente corretas. Surriento é um dos locais mais românticos de Itália, e a estrada que o liga a Salerno um percurso que nos faz soltar palavrões sem darmos por isso. Chamam-lhe Costa Amalfitana. É um trecho de pouco mais de 50km profundamente marcado pelo azul safira do mar. O mar, o mar, o mar. Esta é a terra do mar, se não se importam que use a expressão no mínimo contraditória. Ah! E como é belo o mar! «Vide ‘o mare quant’è bello/Spira tantu sentimento/Comme tu a chi tiene a mente/Ca scetato ‘o faie sunnà». Eu avisei. Mas traduzo: «Vê como é belo o mar/Inspira tanto sentimento/Como tu que vês/O que acordando te faz sonhar». A bem ou a mal toda a gente conhece o som desta canção que já tem mais de 120 anos: foi composta pelos irmãos Ernesto De Curtis e Giambattista de Curtis em 1902. Por nenhuma razão particularmente grandiosa. O contrário até; para passar a escova pelos sapatos do primeiro-ministro italiano da altura Giuseppe Zanardelli. Que ainda por cima não lhe fez a honra de a ouvir muitas vezes já que um ano mais tarde estava morto e enterrado sob sete palmos de terra.

Nesta coisa de canzoni napoletani os irmãos De Curtis deram cartas. Não admira que tenham recebido o convite e admira muito menos que muitas das suas canções, compostas a solo ou em dupla, tenham atingido a popularidade que atingiram. Apesar de tudo não podemos pôr ambos de pé em cima do mesmo risco de giz. Desculpem-me fugir assim, de uma linha para a outra, ao assunto, mas se calhar até nem fujo tanto quanto se possa pensar. De cada vez que visito o sul alegre desta Itália tão diferente da das grandes cidades nortenhas de Milão e Turim, recordo-me do episódio maravilhoso do perú contado por Erico Veríssimo. Uma daquelas fantásticas suas personagens de imigrantes italianos preocupada com o futuro de um filho bisonho resolve espetar-lhe com um discurso. Fala meio português/meio italiano e sente a necessidade de lhe impingir uma metáfora. Sai-se com esta: «Figlio mio sai la história do pirú? Te la raconto. Desenha um risco de giz in redor do pirú e o cretino do pirú ci crede aprisionato. No faz um único gesto que não seja dentro do risco de giz. Por isso te dico: no fai como il cretino do pirú! CVive la vita!, sede felice! Salta o risco de giz e come o pirú!» Foi saltando o risco de giz que os irmãos De Curtis decidiram ficar para a história da música italiana e, sem exagero, da música de todo o mundo.

Os sete ofícios

Giambattista ficou mais conhecido pela sua arte de pintar do que pela sua arte de compor. Era um bicho das artes, de todas as artes, dedicou-se além da música e da pintura à escultura, à poesia e ao teatro. Aquilo que se chama «un huomo di setti uffici». Mais um parêntesis que não há de prejudicar a prosa por aí além: esta coisa dos sete ofícios é, na verdade e curiosamente, uma invenção napolitana. Numa fase de desgoverno total da cidade e do seu domínio sobre os cidadãos fez com que, no ano de 1675, surgisse uma lei que dava a sete ofícios o poder de governar o reino de Nápoles e as sua províncias. O que dirigia tudo quanto dizia respeito a matérias militares era o Grande Condestável; o responsável pela aplicação da lei era o Grande Justiceiro; os assuntos marítimos ficaram nas mãos do Grande Almirante; o Grande Camerlengo tinha em mãos cuidar do património real; o Grande Protonotário era o responsável pela burocracia e pela organização de negócios reais; o Grande Conselheiro estava tão ligado à administração da justiça como o Grande Justiceiro mas situava-se estatutariamente mais próximo do rei, prestando atenção a pormenores mais delicados; finalmente o Grande Senescal tomava geria as finanças mais comezinhas do rei. Fecho o parêntesis, foi só uma curiosidade que veio a propósito de Giambattista De Curtis, um fulano mais ativo do que o irmão Ernesto que, por sua parte, preferiu dedicar-se o mais profundamente que pudesse à composição pelo que não admira que tenha assinado uma série de líricos sucessos como foram os casos de, além de Torna a Surriento – Voce ‘e Notte;  Canta pe’ Me; Non ti Scordar di Me; Sona Chitarra; Tu ca nun Chiagne; Duorme Carmé’; Ti Voglio Tanto Bene.

Nascido em Outubro de 1875, Ernesto era cerca de quinze anos mais novo do que o irmão, nascido em Julho de 1860. Gente finíssima, é preciso dizer. Mas ponham finíssimo em cima dos De Curtis até fazerem um belo monte de vaidade e arrogância. Questão familiar mas que não afetou por demais os dois manos músicos. Talvez a popularidade que as canções que deram ao povo napolitano tenham servido para quebrar uma certa barreira de snobismo que lhes marcava o sangue, tanto nos glóbulos brancos como nos vermelhos. Eles fizeram com que Nápoles se cantasse por todo o mundo e que todo mundo, em troca, se encantasse pelas canções napolitanas, a sua grande maioria, como já disse, com a letra em napolitano que faz com que só quem conhecimento sobre essa velha língua de Nápoles (ia a escrever de trapos e até ficava a matar) perceba pelo menos dois terços do que procuram dizer-nos. 

Sua Excelência o ministro

«Guarda, gua’ chistu ciardino/Siente, sie’ sti sciure arance/Nu prufumo accussì fino/Dinto ‘o core se ne va…/E tu dice “I’ parto, addio!”/T’alluntane da stu core…/Da la terra da l’ammore…/Tiene ‘o core ‘e nun turnà». Afastas-te deste coração e ainda tens coração para dizer que não regressarás a esta terra do amor? É em redor desta incompreensão que Torna a Surriento ganha a sua profundidade mais dramática.

Guglielmo Tramontano é outro mamífero que faz parte da história de uma música sobre a qual vale a pena escrever uma história. Ou uma crónica, se preferirem, embora nos tempos que correm pareça que as crónicas tenham o rótulo de jornalismo de segunda apanha, ou coisa que o valha. É pena e não é justo. E não é por mim que falo e sim por muitos e bons cronistas que a imprensa portuguesa já teve e deixou de ter para encher cada vez mais páginas de comentário político na sua maioria bastante confrangedor, desculpem lá, a opinião é a minha, fica aí assinada por mim, não há que calá-la. Tramontano foi durante vários anos o presidente do município de Surriento e a sua família era quase tão endinheirada como os De Curtis, embora estes puxassem mais o brilho à graxa dos sapatos pretos de gáspeas brancas. Mas estava com problemas sérios na cidade, sobretudo na parte que dizia respeito ao escoamento dos detritos que seguiam diretamente da zona urbana para o mar, algo terrível para um lugar que já se tornara um ponto turístico famoso em todo o mundo.

Giuseppe Zanardelli chegou a presidente do Conselho de Ministros de Itália em Fevereiro de 1901 na vigência do reinado de Victor Emmanuele III. Tinha tido uma juventude duramente revolucionária, era fervorosamente de esquerda, esteve a ponto de ir por diversas vezes parar à quinta das tabuletas, tantos foram os motins, revoltas e atentados políticos nos quais esteve envolvido, e num certo dia de Novembro de 1903, já contava 77 anos, o seu médico teve com ele uma conversa bastante desagradável. Dela saiu Giuseppe com a certeza de que os seus dias de vida estavam reduzidos a uma ínfima parte do que ainda pensara. Embezerrou. E retirou-se. Escondeu-se em Surriento, no Hotel Tramontano, propriedade do seu grande amigo Guglielmo, e ficou a olhar o mar até morrer, tal e qual aconteceu com o grande cantor Enrico Caruso uns anos mais tarde, em 1921.

Apesar de saber que Giuseppe já não tinha grande coisa para dar, Tramontano ficou absolutamente seguro de que se conseguisse alentar nem que fosse ligeiramente o seu tão influente político amigo este poderia mexer alguns cordelinhos do poder para que Surriento fosse abençoada pelo investimento estatal de alguns milhões de milhões de Libras e nada poderia ser melhor para alentar o velho moribundo que uma canção sobre a beleza e o romantismo de Surriento com letra de Giambattista De Curtis e música de Ernesto de Curtis, embora os irmãos, quando trabalhavam juntos, metessem o bedelho no que um e outro iam fazendo. «Ma nun me lassà/Nun darme stu turmiento!/Torna a Surriento/Famme campà!»

«Famme campà»: faz-me viver!

Giuseppe Zanardelli morreu pouco tempo depois de ouvir estas palavras cantadas, olhando a baía, e não se sabe se chegou ou não a fazer uma chamada telefónica para o ministro das Obras Públicas. Vendo bem, também interessa pouco, Surriento sobreviveu, continua maravilhosa como uma dessas atrizes italianas que rebenta a escala até aos 90 anos, à moda de Sophia Loren ou Gina Lollobrigida . “È una bella donna!”