Rush: ‘Eles arriscavam a vida ao fim-de-semana’

A rivalidade entre os pilotos de Fórmula 1 Niki Lauda e James Hunt gerou um grande filme de corridas de automóveis. Rush – Desafio de Rivais celebra o duelo épico entre um estratega e um playboy na magnífica realização de Ron Howard, servida pelo guião de Peter Morgan. Ao SOL, Daniel Brülh relatou-nos como foi…

o actor alemão que saiu do anonimato em goodbye lenine (2004), acelera para se tornar na nova estrela de hollywood. e o cartão de visita não poderia ser melhor, na irrepreensível composição do piloto niki lauda em rush – desafio de rivais, sobre o verdadeiro choque de titãs travado no alucinado campeonato de fórmula 1 de 1976 pelo famoso e disciplinado piloto austríaco de fórmula 1 e o britânico libertino e mulherengo james hunt.

no mesmo campeonato em que lauda sobreviveria ao terrível acidente, mas que não o impediu de regressar duas semanas depois às pistas para se medir com o britânico num final de temporada que desafia a imaginação. que se desengane quem esperava um amontoado de clichés, de resto na linha das adaptações que o realizador fez dos romances de dan brown. graças a uma enérgica realização e ao guião bem tricotado por peter morgan, vivemos uma autêntica febre de velocidade e emoções a 200 à hora. apesar de ser o rosto do loiro hemsworth a ocupar o cartaz do filme, acaba por ser daniel brühl a captar os momentos mais saborosos.

como foi interpretar alguém que é um ícone tão grande como niki lauda?

no início, é algo que nos impressiona, porque ele é mesmo uma lenda vida. mas se essa pessoa está disposta a apoiar-nos, a nossa vida torna-se mais fácil. conta-nos histórias que ninguém sabe.

é verdade que após o primeiro encontro com o ron howard este entregou-lhe logo o papel? como decorreu esse encontro?

falámos de filmes de corridas e da minha relação com carros. e falámos do niki. disse-lhe que ficava muito orgulhoso por se lembrar de mim para esse papel. até porque ele é muito diferente de mim. provavelmente, algo não muito inteligente para dizer numa audição, mas quis deixar claro que seria um trabalho e um esforço enormes. até porque na alemanha o niki é uma espécie de lenda viva. é difícil interpretar alguém assim.

o próprio niki lauda sabia que o daniel tinha sido o escolhido?

não, no início não. mas eu sabia que ele haveria de me ligar. e um dia de manhã cedo, toca o telefone e vejo o indicativo +43, que é o indicativo da áustria. respirei fundo e atendi e ouvi: (a imitar a voz de niki lauda) ‘está, parece que temos de nos encontrar. venha até viena, mas traga apenas bagagem de mão. é que se a coisa não resultar, pode ir-se logo embora’.

assim mesmo?

sim, isto é o niki lauda. directo e sem cerimónias. lá fui para viena, assustado e apenas com uma malinha de mão. felizmente, ao cabo de cinco minutos sorriu e percebi logo que aprovava a minha escolha para o papel. lá tive então de comprar mais roupa…

qual era a opinião que tinha antes do niki? já era um fã do automobilismo?

sim, cresci em colónia, não muito longe do circuito de nurburgring, onde aconteceu o seu terrível acidente. claro que todos sabemos quem é o niki lauda. e ele continua muito presente na televisão a apresentar programas de f1. no final de tudo, até me disse: ‘bom se quiser, acompanhe-me até ao brasil. vou pilotar o avião’. e eu lá fui…

conheceu alguns pilotos?

sim, quando viajamos com o niki lauda, todas as portas se nos abrem. conheci o vettel, falei também com o nico rosberg (filho do piloto keke rosberg), e tive oportunidade de conhecer o jackie stewart e o nelson piquet. foi uma oportunidade para comparar a maneira de ser destes pilotos antigos, mas também os tipos mais modernos.

como se sentiu depois de perceber que tinha a aprovação dele?

foi tudo muito estranho. antes e depois. e logo a seguir entrei em pânico.

que preparação teve para interpretar este piloto de fórmula 1? calculo que a condução de carros de corrida estava incluída…

sim, tive de aprender a conduzir este carros de f1 (modelos transformado a partir de um fórmula 3) e corrigir o sotaque. isso era muito importante, pois como alemão tenho um sotaque completamente diferente. e adquirir aquele tipo de arrogância e ironia. tal como o sentido de humor.

o niki explicou-lhe também toda aquela sensação de velocidade, mas também o perigo que enfrentavam?

claro. falámos de tudo. ele é uma pessoa muito aberta. contou-me como desafiavam a morte em cada fim-de-semana. e o que isso significava, para eles e para as suas famílias. é o que diz o james hunt no filme, ao referir que são uma espécie de gladiadores modernos. esses eram dias em que efetivamente arriscavam a vida. o niki disse-me, e isso vê-se no filme, que estava disposto a arriscar a vida em 20%. mas não mais do que isso. não sei como ele calculava isso… mas foi graças a pilotos como o niki que a fórmula 1 se tornou mais segura. a segurança para ele era algo que o preocupava.

não tem nenhuma memória desse tempo…

eu não, mas os meus pais sim. eles viveram os anos 70, que eram bastante glamourosos. para além dos acidentes, o ambiente era todo muito sexy. havia o rock and roll e tipos como o james hunt, um piloto moderno.

o niki confirmou-lhe toda essa rivalidade entre o james, e as trocas de piropos entre ambos?

a rivalidade estava sempre presente. mas por detrás existia muito respeito. acho que se estimavam bastante, apesar de na pista serem todos rivais. até mesmo os colegas de equipa.

também gosta de carros velozes?

sim, gosto de guiar depressa, mas agora tenho mais cuidado. é muito difícil controlar estes carros. a primeira vez que guiei o meu ferrari falso – na verdade era um modelo de formula 3 transformado – tive um acidente, perdi uma roda, fiz uns peões. digamos que foram uns segundos desconfortáveis. mas foi uma experiência.

no filme teve de fazer algumas manobras mais arriscadas?

sim, fizemos mais do que era pedido, mas sempre com toda a segurança. quando fiz o meu curso com o carro de fórmula 3, antes do filme, na pista de barcelona, andava ainda mais depressa. tive também a oportunidade de fazer um teste do velocidade, como co-piloto de um piloto profissional, na pista de le mans e na alemanha. isso sim, foi assustador. sente-se mesmo a força g quando travam.

imagino as dores de pescoço…

sim, eu até dizia, em brincadeira, ao chris hemsworth que era bom para treinar os músculos do pescoço… apesar dele ter outro problema: entrar e sair do cockpit. a brincar, eu dizia, ‘lá vai o thor a entrar naquele carro minúsculo’… acho até que tiveram de o modificar e torná-lo um pouco maior.

como foi trabalharem juntos? mantinham-se em personagem mesmo quando não estavam a filmar?

sim, foi bastante divertido. não havia ali nenhum estilo ou método de representação. tivemos apenas de criar aquela rivalidade falsa. fomos sempre muito curiosos um pelo outro e tivemos respeito. e não podíamos ser mais diferentes. ele é aquele tipo de surfista australiano descontraído ao passo que eu sou um típico alemão, apesar da minha origem hispânica. e vem de um tipo de cinema completamente diferente. esta diferença acabou por ser boa para o filme. no entanto, mantinha-me em personagem sempre que queria protestar com alguma coisa. por exemplo, quando o catering não prestava, dizia (em sotaque) ‘esta comida é uma treta!’ (risos) e resultava. traziam algo melhor.

esta foi uma personagem que gostou de recriar?

sim, sempre me atraiu a possibilidade de interpretar estas personagens que admiro. bem como o daniel domschet-berg (de o quinto poder) por ser um verdadeiro activista. não só fala como eu, mas faz coisas a sério. e o niki pelo seu lado destemido e a sua atitude, não só com as pessoas mas a evitar conflitos. por vezes, acabo por ter mais problemas por ser mais diplomático a resolver certos problemas, mas é assim que sou. era bom poder dizer a verdade directamente na cara.

como compara este papel ao que tem no filme o quinto poder? teve aí uma aproximação diferente? diria que aí é mais daniel brühl?

não, apesar dessa personagem ter mais a ver comigo. encontrei-me com ele algumas vezes. somos ambos alemães, temos a mesma idade e até somos um pouco parecidos, o nossa formação é semelhante. isso faz com que nos aproximemos, até porque o niki pertence a um outro estatuto. mas a preparação foi igualmente exigente. é claro que se trata do wikileaks, que todos conhecemos.

lembra-se do que pensava quando estava a começar. imaginava que alguma coisa assim pudesse um dia acontecer?

sempre fui muito optimista com o meu trabalho. é claro que desejei que certas coisas acontecessem, mas se algum vidente me dissesse o que se passa diria que queria o meu dinheiro de volta, pois não acreditava. há filmes que significam um novo passo. é claro que todos eles têm o seu significado, mas alguns, como estes dois, têm um significado especial. tudo começou com goodbye lenin, um filme que gerou muita atenção e apreciação. depois também o sacanas sem lei, do tarantino, pois foi a primeira oportunidade de interpretar uma boa personagem num filme internacional e com um grande realizador. depois, talvez o rush, pela dimensão e por poder trabalhar com o ron. acho que tive a melhor experiência que podia ter com ele. criou a melhor atmosfera possível. é o patrão sem ser mandão. e foi ele que me abriu as portas para fazer o quinto poder, algo que ele não me disse.

apesar deste ser um filme de rivais, não existe um herói e um vilão, pelo menos isso não está sublinhado. acha que isso é mais favorável ao filme?

as reacções que tivemos mostram-nos que as pessoas ficaram agradavelmente surpreendidas, mesmo aquelas que não gostam particularmente de corridas de automóveis. interessaram-se por estas personagens intrigantes e fascinantes. o que faz com que o filme não seja só um filme de acção e corridas. não há essa convenção de ter um herói e vilão. aqui percebemos essas duas filosofias de vida.

acha que neste momento, a sua carreira passará mais pelos estados unidos que pela europa?

não sei, estou apenas a apreciar o momento. o cinema tornou-se mais global. os actores europeus participam muito em filmes americanos e até muitos filmes são rodados na europa, e mesmo na alemanha, por razões fiscais. é claro que isso abre oportunidades. não escondo que gostaria de trabalhar com bons realizadores americanos, mas também sou europeu e gosto de defender o cinema europeu.

com quem se identifica melhor: com o niki lauda ou com o james hunt?

acho que tenho elementos de ambos, embora não seja nem um nem outro. não sou tão competitivo como o niki nem tão festivo como o james. mas é difícil competir com o niki. e se um dia tiver de jantar com ele, tem de se despachar, porque antes da sobremesa ele vai-se embora dizendo: ‘bom, a parte mais interessante da conversa já foi. só estamos a perder tempo, vou-me embora’. quanto a nós vemo-nos logo à noite na pista de dança… (risos).

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