‘Lance Armstrong deve sentir-se como um animal enjaulado’

O que estava previsto ser uma celebração do maior ciclista de todos os tempos tornou-se um documentário sobre a queda de um herói. A Mentira de Armstrong estreou na semana passada em Portugal. Alex Gibney, o realizador, fala do doping, da sua relação com Lance e do novo dia-a-dia do desportista.

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«eu gosto de vencer, mas acima de tudo não suporto a ideia de perder; porque, para mim, perder é como morrer». é assim, de olhos na câmara, que lance armstrong reflecte sobre a sua obsessão. o vencedor de sete vezes consecutivas da volta a frança (entre 1999 e 2005) – e também de uma batalha contra um cancro testicular – regressaria ainda à estrada, em 2009. entretanto, a denúncia do ex-colega de equipa frankie andreu viria confirmar as inúmeras acusações de doping sistematicamente descartadas por ausência de provas.

foi aí que alex gibney se viu obrigado a a inverter o sentido do documentário que estava então a realizar sobre o ciclista. autor dos esclarecedores enron: the smartest guys in the room, sobre a monumental fraude financeira que levou à bancarrota da empresa energética, e de taxi to the dark side, que desvenda os segredos da tortura por parte de militares americanos, gibney, que tinha começado um documentário sobre o desportista empenhado em vencer a todo o custo, tentou penetrar nos mistérios da sua atitude compulsiva. o resultado é o filme que estreou na semana passada. e que começa precisamente com o famoso interrogatório de oprah winfrey em que o ciclista assume todas as suas mentiras e o consumo de doping.

pode dizer-se que no caso de armstrong assistimos à queda de um herói?

sem dúvida. foi quase uma tragédia grega. a ambição desmedida que o tornou grande acabou também por o derrotar. nesse sentido, podemos vê-lo da forma como o descreve.

este projecto começou por ser um filme a engrandecê-lo e acabou por narrar o seu rol de mentiras…

o conceito inicial, apesar de não ser uma promoção, era celebrar a força da sua história. não apenas no plano desportivo, mas como um exemplo ainda maior. em 2009, ele ia regressar, ia fazer tudo de novo, ia querer ganhar o tour outra vez. o filme que íamos fazer era sobre isso, só faltava terminá-lo.

nunca suspeitou que ele tomava doping?

é claro que havia suspeitas do passado, mas nada tinha sido provado. a história dele – a do atleta limpo – era credível. uma das coisas boas do desporto é perceber como nos podemos transcender. isso pode tornar-se numa imensa alegria. nessa altura eu estava convencido de que ele estava limpo. acho que só quando começaram a conhecer-se mais detalhes é que as coisas pioraram para ele.

acha que o argumento de se dizer que toda a gente consumia pode de alguma forma servir de justificação moral?

não serve de justificação moral, mas serve de justificação prática. ele, tal como outros jovens atletas, estava num ambiente em que havia duas opções: ou estava limpo e perdia, ou tomava doping e teria algumas hipóteses de ganhar. muitos ciclistas viam isso como parte do ‘pacote’. não vou dizer todos, mas seguramente os ciclistas de top tomavam doping.

mas a verdade é que ele tinha acesso a quase tudo enquanto outros não tinham acesso a quase nada…

isso poderia levar-nos a uma resposta demasiado longa. recordo que comecei este filme em 2008, há cinco anos. se estivesse a trabalhar apenas nele estaria em apuros…

o que levou armstrong a mentir?

curiosamente, parece-me que há características comuns a julian assange e a lance armstrong. são ambos afectados por aquilo a que a polícia chama ‘corrupção de causa nobre’. só porque acham que estão a fazer o bem, sentem que têm legitimidade para se portarem mal.

uma espécie de mentira justificada?

exacto. a mentira dele era alimentada por uma boa causa. por exemplo, achava que o trabalho que desenvolvia com doentes de cancro lhe dava o direito de mentir. no caso dele há um abuso de poder: ele não dizia apenas ‘o meu teste não deu positivo’; ele dizia ‘como se atreve a pensar que eu, um sobrevivente de cancro, tomaria drogas para melhorar o desempenho?’.

o facto de os vestígios da droga usada, o epo [eritropoietina, substância que produz glóbulos vermelhos e acelera o metabolismo], desaparecerem em quatro horas dava-lhe um álibi quase perfeito…

claro. era óptimo porque ele podia dizer que o teste fora negativo. o truque era não estar com o agente do controlo anti-doping dentro dessa janela de tempo. até porque havia um período em que os agentes não podiam actuar. e era aí que eles todos tomavam o epo.

o lance contactou-o para lhe comunicar que tinha mentido?

sim, ligou-me um mês antes de ser entrevistado pela oprah. ligou-me, contou-me tudo e pediu desculpa.

pensou que ele poderia ainda aceitar completar o seu documentário dando a sua versão dos factos?

isso chegou a ser equacionado. o mais interessante foi ir atrás e rever o que tinha filmado. foi aí que reparei que em certos momentos de conversa algo me tinha escapado.

ficou decepcionado ao saber que tinha sido enganado por lance?

uma das lições desta história é que não compensa ser cínico.

acredita que um dia o desporto poderá ficar livre do doping?

acho que já está mais limpo. os testes são mais rigorosos. mas acho que está sempre na fronteira. sobretudo quando há muito dinheiro em jogo, os atletas tentarão encontrar meios para vencer o sistema. tal como os banqueiros continuarão a tentar contornar as regulações do mercado.

no início do documentário pergunta ao lance a razão pela qual ele regressou em 2009. ele é um homem que não encara a hipótese de parar?

no filme eu digo que ele queria provar que não fazia diferença se tomava doping ou não. queria vencer mesmo correndo sem doping. e neste novo ambiente não correria um risco tão grande. a outra é uma razão atlética, pois ele olhava para o tour e achava que podia vencê-lo.

acha que essa vontade de vencer a todo o custo é uma herança americana, como sucedeu recentemente com o escândalo bancário?

sim, é algo mundial, mas nos eua é particularmente acentuado. nós promovemos o capitalismo cowboy. a ideia é vencer, e não interessa como. a história de armstrong é um bom exemplo.

ao longo de todo este processo conseguiu perceber a razão porque ele tomou doping?

nunca saberemos ao certo, mas eu deixei as pistas no filme. ele tinha um filho jovem. tinha poucos meios, estava zangado com o pai, a quem chamava ‘dador de esperma’. era ele e a mãe contra o mundo. ele podia ser o sr. fairplay, mas sabia que assim não iria ganhar e ter dinheiro. a certa altura, o médico disse-lhe que ele tinha um certo dom físico; não que fosse único, mas comparado connosco era fantástico. tinha esse dom e poderia usá-lo. e foi o que fez. quanto ao doping, não foi algo que lhe tirasse o sono. ele sabia que era o que tinha de fazer para vencer.

no filme mostra como ele fazia testes de treino que lhe permitiam saber, com alguma segurança, se podia ganhar o tour…

do ponto de vista atlético, esse é um dos mistérios que subsistem. segundo ele, apesar de não precisar, começou a tomar doping em 1994-95, ou seja, antes do cancro. e nessa altura não ganhou o tour. o que terá mudado para que em 1999 começasse a ganhar? não pode ser apenas do doping, porque já tinha começado a usá-lo cinco anos antes…

nessa altura ele já era seguido pelo dr. ferrari?

o ferrari começou com ele antes do diagnóstico de cancro. e esteve com ele até vencer o cancro, como se diz no filme. acho que o ferrari foi a chave. acho que o médico compreendeu que ao colocar mais pressão no coração e nos pulmões conseguiria melhores resultados. e é aí que a droga tem maior efeito. seja o epo ou as transfusões. se coloca maior pressão na parte superior do corpo, e ainda por cima se tem uma capacidade pulmonar invejável, então podem alcançar-se resultados espantosos.

ainda o admira?

numa base quotidiana, sim. continuo a ter conversas interessantes com ele. mas ele ainda não viu o filme, por isso não sei se ficará satisfeito… acho que teremos de julgar as pessoas pela forma como nos tratam, e ele nunca me fez mal; é claro que me mentiu, mas não foi o primeiro… [risos]

ele quer ver o filme?

sim, quer. e irá vê-lo por estes dias. dissemos-lhe que só poderia ver o filme depois da primeira projecção pública.

qual é a actividade do lance armstrong hoje em dia?

acho que se deve sentir como um animal numa jaula. não pode competir, que é o que ele mais quer.

ele quer competir?

sim. só não pode por ter sido banido. ele queria começar a participar nas competições iron man. mas parte da vida dele é ocupada com batalhas legais. e uma delas, se perder e lhe aplicarem a pena máxima, poderá custar-lhe 100 milhões de dólares… não sei quanto lhe custará o apoio legal, mas não deve ser pouco.

acha hoje que ele se dopou em 2009?

tenho muitas dúvidas de que não o terá feito. mas as provas parecem indicar o contrário. ele disse-me na entrevista que tinha regressado e que queria competir limpo. acho que isso é verdade. mas tinha um plano de contingência e, quando estava perto de perder, penso que activou esse plano.

existe neste filme algum elemento de vingança? ‘sim ou não?’, como na entrevista de oprah?

não vejo aqui um elemento de vingança. não se trata disso. a história mudou e eu limitei-me a seguir a história. até porque sou parte dela. não estruturei o filme como um ataque ao lance. a intenção era ser um acto de descoberta.

acha que o género documental tem hoje um poder que não tinha antes?

os documentários são filmes. pelo menos é assim que os vejo. relatam eventos reais que muitas vezes são mais cativantes que a ficção. há estilos diferentes, mas usam-se até técnicas de ficção. para mim, trata-se apenas de contar boas histórias. antes havia regras de género mais restritivas. por exemplo, neste filme existem momento de alguma ambiguidade e mistério. e quando tivemos de captar imagens do desporto tínhamos os recursos necessários e filmámos certas etapas como se fosse cinema.