Texto | Felícia Cabrita
Tem quase um século de vida mas é uma mulher desempenada. Filha de camponeses minhotos com um rol de filhos que ultrapassava a dezena, escapou às misérias do campo por um obséquio do acaso. «Sempre vivi em palácios», gosta de repetir, do alto dos seus 94 anos e com a gargalhada solta de quem já não tem de provar nada a ninguém. Aprendeu, talvez com um dos melhores, a prestar uma minuciosa atenção às finanças. E, de cozinheira, passou rapidamente a empresária.
Mavilde Araújo vive hoje, por opção, num lar da ordem franciscana. Vendeu recentemente a moradia que conseguiu através do homem que, durante quatro décadas, manteve o país acorrentado.
Desfez-se de tudo o que considerou inútil ao cabo de uma vida cheia, com exceção de um amontoado de objetos de existência longínqua, mas dos quais está tão próxima como se tivesse vivido o melhor da sua vida na mesma época. Com as mãos trémulas, escolhe uma moldura que a leva a recuar no tempo.
Tendo como pano de fundo os jardins de São Bento, revisita-se, mais nova, a posar encostada à cadeira onde António de Oliveira Salazar passa agora a maior parte do tempo. O ditador não perdera o ar esfíngico, mas, analisando a sua fisionomia na foto, observa-se algo pouco habitual: o olhar absorto, de quem entrou em abulia.
Já lá vão 50 anos desde que Salazar, sem a heroicidade do mito, tombou de uma cadeira de lona, o que levaria à sua substituição na presidência do Conselho. Batera com a cabeça violentamente no chão de pedra do Forte de Santo António, em São João do Estoril, onde veraneava, mas recusara-se a ir ao hospital. O acidente fora mantido em segredo, como convinha à propaganda que fizera dele uma figura imortal. Só passadas umas semanas, queixando-se permanentemente de cefaleias e desequilíbrios, o homem de Santa Comba foi levado para a Cruz Vermelha, de onde não sairia o mesmo.
Com a chapeleira de Francisco Franco a rodopiar nas mãos pequenas, a anciã faz um longo trajeto ao passado. Estava com 14 anos quando chegou a S. Bento pelas mãos do dono da Casa da Sorte. Caminhava para o seu termo o ano de 1939. A Guerra Civil de Espanha chegara ao fim, mas ainda se faz sentir o efeito psicológico da bomba destinada a estoirar com Salazar, dois anos antes, por um grupo de anarquistas que não lhe perdoavam o apoio a Franco. O ambiente que espera Mavilde é de alguma tensão. Até aí, a mística triunfalista criada em torno do estadista não fazia prever perigos.
A rapariga surge quando, para evitar más surpresas, Oliveira Salazar se muda do apartamento da rua Bernardo Lima para o palacete da família Sottomayor, que o Estado compra para dele fazer residência oficial do chefe do Governo.
Salazar em Santa Comba Dão