Há muitos trilhos desses?
O de Carenque é importante porque é o maior trilho dos dinossauros mais modernos. O da serra de Aire é o mais antigo dos saurópodes. Pensava-se que os saurópodes tinham aparecido há 150 milhões de anos e vamos encontrá-los lá há 175 milhões, 25 milhões de anos antes.
Em Carenque, que dinossauros eram?
Só sabemos que era um bípede. As pegadas têm 60 a 70 centímetros de diâmetro. A pedreira foi aberta para explorar a pedra;, quando chegaram àquela camada, já não interessava e pararam os trabalhos. Foi essa a sorte. Os rapazes viram uma pegada e deram com o trilho. Estava sujo, tinha erva, limpou-se tudo. Hoje está tudo tapado, ao abandono.
Percebeu logo que ia ser uma grande batalha?
Foi muito difícil. Cavaco era intransigente, não queria de maneira nenhuma abrir os cordões à bolsa para se abrirem os túneis por baixo da pedreira e preservar os trilhos. Mas acabaram por ser feitos.
O que foi determinante?
Conseguimos pôr o país inteiro a favor das pegadas, foi isso.
Chegou a haver ameaças?
Isso não. Houve atitudes menos corretas de alguns ministros, mas outros foram muito favoráveis. A Teresa Patrício Gouveia [ministra do Ambiente e Recursos Naturais] ajudou muito, o Ferreira do Amaral, que era ministro das Obras Públicas, também. Mas levei muita pancada do Miguel Sousa Tavares, dizia que eu estava a gastar o dinheiro dos contribuintes para fazer uma coisa que não tem interesse nenhum, só para ensinar as criancinhas. Sabe muito, é um homem inteligente, mas é desagradável.
Voltaram a fazer um cordão humano este ano para salvar as pegadas, uma iniciativa de alunos da Escola Básica Professor Galopim de Carvalho. Sente o quê? Desilusão?
A CREL foi inaugurada em 1995, salvaram-se as pegadas, foram limpas, pôs-se uma tela por cima e, passados estes anos todos, aquilo está tudo ao abandono. O arquiteto que desenhou o túnel fez de um lado uma cabeça, o dinossauro visto de frente, e na outra o dinossauro visto de trás. A maior parte das pessoas nem repara nisso. Na Alemanha visitei um parque com meia dúzia de pegadas que não têm o interesse destas e fizeram uma estrutura imensa, parecida agora com que o se fez na Lourinhã. Mas nem esse parque foi uma iniciativa dos Governos, foi uma iniciativa do Otávio Mateus. Não está ali dinheiro do Estado. E rende. É uma área que o país tem negligenciado. As pegadas da serra d’Aire estão a estragar-se todas, é uma vergonha. Mas vamos lá convencer os políticos…
Foi a maior batalha que travou na sua vida?
Foi, e foi vitoriosa naquela altura. Nunca sonhei que depois das pegadas salvas não fossem transformadas num local de visita. Fez-se o projeto do centro de interpretação, mas nunca houve dinheiro.
Quanto se gastou para salvar as pegadas?
Naquela altura, um milhão e 600 mil contos, seis milhões de euros. Fazer o resto em cima era uns trocos, mas nunca se fez. Mas não se fez com o Cavaco, Sócrates, com ninguém.
Revela o quê, na sua opinião?
A imaturidade de um país que não está preparado para ser democrático. Li hoje uma frase de Guerra Junqueiro: falava de um povo imbecilizado, políticos sem ideias, que não sabem ser políticos. Reunimos não sei quantas mil assinaturas para o assunto ser tratado na Assembleia da República. Passaram a chamar-me o pai dos dinossauros, depois passei a ser avô. [risos]
O Parque Jurássico de Steven Spielberg mudou o interesse na paleontologia?
Sim, mas cá acho que este movimento e o barulho que fizemos ajudou muito. O filme apareceu dois ou três anos depois. Passou a haver projetos. Fez-se uma grande exposição no Museu de História Natural, na Rua da Escola Politécnica. Pudemos trazer especialistas estrangeiros, dos EUA, de França, do Canadá, da Mongólia, da China. Isso movimentou muito dinheiro nessa altura. Depois passou tudo. O Sócrates dizia sempre, “o professor manda, o professor não pede, manda”. Nunca me ligou nada.
Gostava de ainda ver concretizado esse projeto?
Gostava muito. Fizemos o cordão de apoio, vou lutando. Falei com todos os presidentes que passaram pela Câmara de Sintra.
O terreno é da câmara?
É do José Guilherme, o construtor. Nunca quis vender, o Estado também não quis. Andou a namorar-me muito tempo porque queria que eu conseguisse autorização para fazer prédios em torno das pegadas. Está a ver o que era: uns prédios com vista para as pegadas. Então, nessa altura, fazia tudo. Olhe, foi pena, ao menos estavam acessíveis às pessoas. Não há uma cultura geológica em Portugal. O que é que a geologia lhe diz? Nada. Tenho pena de não me poder desdobrar pelas escolas todas. Escrevo no Facebook e nunca senti tanto interesse como hoje pelas histórias. Escreveram-me hoje aqui: ensinam de uma forma natural; além disso, são quase poesia.
E é?
De certa maneira sim. As histórias são bonitas. Como se forma o granito, o calcário, o volfrâmio, que utilidades ao longo do tempo se foram buscar à geologia, porque é que houve glaciações há milhões de anos. É a história do planeta. Claro que, quando vou às escolas, todos querem saber de dinossauros. Às vezes tenho de dizer “já chega”.
Como desvia a atenção?
Já pensou como nasce uma montanha? Lá em casa, na sua cama, ponha um lençol, outro lençol, um cobertor, outro cobertor, faça uma pilha de roupa com várias camadas, como as camadas de sedimentos do fundo do mar. Se pegar na roupa da cama e fechar os braços, vai ficar com dobras para cima e dobras para baixo. As dobras para cima são as montanhas, as dobras para baixo são as raízes das montanhas. Vão aquecer, vão derreter, formam-se magmas, com tendência a subir, forma-se o granito. Porque é que temos tanto granito? Porque tivemos uma cadeia de montanhas. Aconteceu o que está agora a acontecer nos Alpes, nos Himalaias.
Como vamos ser no futuro?
Há indícios de que vai fechar o Atlântico. Abriu, estávamos colados ao Canadá. No centro há uma racha de onde sai o magma, o magma que fez alargar o fundo do oceano. Daqui a uns 35 milhões de anos, aproximadamente, estaremos já muito próximos dos Açores. E daqui a uns 180 milhões de anos temos o Marquês de Pombal a abraçar a Estátua da Liberdade. [risos]
Ainda cá vamos andar?
Não acredito. A Terra vai continuar, mas esta civilização vai desaparecer.
Existirão novas espécies depois do Homo sapiens.
Com certeza. Mas estamos a criar insustentabilidade. Mesmo que tenhamos uma espécie mais evoluída do que a nossa, ela vai continuar a precisar de ar, de água, de bens que a natureza nos dá e que não são inesgotáveis. O Sapiens tem 300 mil anos. Não sabemos quanto mais tempo terá. Só China e Índia são não sei quantos mil milhões de pessoas, vamos respirar um ar cada vez mais poluído, beber água que não presta. A sua geração talvez não sofra, mas a dos seus filhos, sim.
Somos a última geração a ter alguma previsibilidade.
A poder respirar. Vai haver um tempo em que as pessoas têm um contador de oxigénio para entrar em casa. E pagam.
Que mais imagina?
Sei lá. A Terra tem mais 5 mil milhões de anos para viver, até o Sol crescer, crescer e nos apanhar. Antes de isso, claro, começará a ser muito quente.
O que resistirá mais tempo? São as baratas, como se costuma dizer?
Estão cá há 300 milhões de anos, iguaizinhas a elas próprias.
Um geólogo aprende a relativizar o tempo?
Tratamos o tempo com uma displicência muito grande, falamos de milhões de anos com uma falta de respeito enorme. Tem ideia do que é um milhão de anos? Um milhão? Eu digo-lhe: se for bater um sino de uma igreja uma badalada por segundo, tem de estar 11 dias e 14 horas a dar badaladas, sempre a bater, sempre a bater. Ou se quiser meter um milhão de bagos de arroz em sacos, enche 16 sacos de quilo. Um milhão é isto.
Só um.
Sim, dizemos 70 milhões, 150 milhões, 6 mil milhões de anos. Quando dizemos que os sedimentos com 200 milhões de anos são recentes é porque é relativo aos 4500 milhões de anos da Terra.
Mas imagino que ao mesmo tempo tenha uma noção mais apurada do quão efémeros somos.
Quando se faz a escala do tempo, quando se compara a história da Terra às 24 horas do dia, aparecemos nos últimos segundos. Foi quase sempre uma Terra sem vida, inóspita. Foi disto que gostei na geologia, mas acho que todas as profissões são bonitas se nos aplicarmos.
Podia ter sido outra coisa?
Houve uma altura em que quis ser arquiteto, tinha um certo fascínio. Ainda hoje gosto de ver, tenho uma certa apetência.
Como se mantém um casamento de 60 anos?
Casámos em 1957, 62 anos. A tolerar-se um ao outro. Os velhos estão sempre à birra mas não podem viver um sem o outro. Ficamos mais rabugentos, sem paciência. Uma pessoa tem sempre de fazer o ponto de situação. Enquanto o balanço for positivo, está bem. No nosso tempo era complicado se alguém se quisesse separar. A minha mulher começou a trabalhar primeiro do que eu, como professora, foi o suporte da nossa casa. Logo isso, dá uma grande independência à mulher.
O que o preocupa mais no país de hoje?
Não termos aproveitado 45 anos para cultivar este povo, para lhe dar cultura cívica. Não precisava de ser cultura científica, é cultura cívica. Só lhe damos futebol, só lhe damos porcaria.
Não gosta de futebol?
Nada. Sou capaz de gostar de ver um desafio de futebol, a habilidade dos jogadores. Agora, o mundo do futebol, aqueles comentadores, aqueles treinadores, desligo logo. É um país alienado, as nossas televisões são alienantes, mesmo a televisão do Estado, tirando a 2.
O que lhe dá mais prazer hoje em dia?
Escrever, cozinhar. Partilho no Facebook algumas receitas que vou fazendo. Cogumelos de coentrada com ovos e batata palha, um sonho. A minha mulher cozinha por receita, rigorosamente; eu sou o criativo, o anarquista na cozinha.
De que tem mais saudades?
Não sei, vivo muito o dia-a-dia. Estou muito ocupado sempre. Ter a cabeça boa só tem um inconveniente muito grande: temos a noção da decrepitude física. Se me levantar agora, vou inseguro. Acabo por me movimentar pouco. Se vou a um museu, às Janelas Verdes, estou constantemente a sentar-me. Aqui sentado em casa estou muito bem, não sei que idade tenho.
O que era mais fascinante quando veio pela primeira vez a Lisboa?
Ver os elétricos, ver o mar.
Lembra-se da primeira vez que o viu?
Tinha 12 anos. E não foi o mar, foi o Mar da Palha, no Cais das Colunas. Vim do Barreiro para Lisboa. Era um deslumbramento.
Os seus avós viram o mar?
A minha avó, não. Mas vinha-se a Lisboa uma vez na vida. Os meus pais vieram em 1940 à Exposição do Mundo Português e, depois, uma vez mais tarde, para ver uma revista.
Também é anarquista politicamente?
Sou mais socialista do que os socialistas, mas não sou sectário como os comunistas.
Nunca o convidaram para a política?
Todos menos o CDS, para militante. Nunca me filiei. Todos os partidos têm coisas com que não concordo. Elogio quando me apetece e critico quando me apetece.
Há uma crise de regime?
Não acho, acho que precisamos é de uma limpeza na justiça. A Assembleia da República podia resolver tudo, criar legislação adequada. Temos a mesma justiça do tempo de Salazar.
Apesar de não gostar da escola que teve, era um miúdo curioso?
Muito, tudo o que aprendi foi fora da escola. Convivia muito com o Lima de Freitas, pintor, com o Mário Ruivo, que foi político, e com dois ou três rapazes mais velhos do que eu que sabiam muito de filosofia e história. Tinha 15, 16 anos quando fiz as primeiras perguntas e nunca mais deixei de estudar por mim.
E sempre gostou do campo.
Aprendi muito com os camponeses, foi aí que fiz a minha formação social e política, no drama de vida dos alentejanos. Percebi o que era a exploração do homem, enriquecer à custa do empobrecimento dos outros. Formou a minha personalidade.
Um livro que o tenha marcado?
'As Vinhas da Ira'. 'Ratos e Homens' também li, gostei muito.
E música?
Gosto de ouvir Zeca Afonso, cantar alentejano. Hoje tenho mais dificuldade, oiço uns timbres mas não oiço uns outros. Tive o meu irmão músico, Francisco José, morreu em 1989. Éramos seis. Tenho uma irmã com 92, outra com 80.
Custa muito perder os irmãos?
Custa muito. Custa muito perder as pessoas da nossa geração. Todas as semanas perco alguém, é próprio, tenho muitos amigos e colegas nos 80, nos 90. Todas as semanas há um que bate a bota e estamos sempre perante o problema da morte. Que não me preocupa a mim. Posso morrer logo que não me faz diferença nenhuma. Gosto muito de estar vivo, mas não me preocupa.
Pensou sempre assim?
Há alturas da vida em que não se pensa na morte, começa-se a pensar a partir de certa idade, quando começam a aparecer algumas doenças, quando o coração leva ao hospital, vem um enfarte. Eu já tive um enfarte, dois AVC, já estive com o problema de bater a bota. Mas uma pessoa tem de andar, estamos aqui a falar, levantei-me muito cedo, fiz os meus trabalhos.
Li que sempre foi de dormir pouco.
Durmo à tarde e deito-me cedo mas, às vezes, às quatro horas já não tenho sono, venho escrever. Escrevo os livros, para o Facebook, para dois blogues.
Projetos não faltam, então?
Isso é que ajuda. Às vezes penso que posso não acabar, mas enquanto estou a trabalhar estou feliz da vida. Geralmente trabalho entre as quatro e as 11 da manhã.
Se pudesse recuar no tempo, onde ia?
Talvez aos meus 30 anos, a Paris. Quem sai da província e entra numa cidade como Paris, com oferta cultural por todo o lado, uma maneira de ser diferente... Havia greves, que cá não havia, havia televisão livre, cinema sem censura. Vou para Paris quando estamos cá no auge da repressão política. Quando vi a primeira greve fiquei fascinado ao ver a polícia a amparar os grevistas, a apoiá-los; cá, a polícia batia.
Andou nas lutas antifascistas?
Pouco, levava os meus recados, os papelinhos, muito no campo. Conheci muitos militantes comunistas que ninguém sabia que eram.
É uma história que está devidamente feita?
Acho que a geração mais nova não foi devidamente informada sobre aquilo que Portugal passou. É nesse sentido também que digo que a televisão podia ter tido um papel pedagógico, podia ter sido uma universidade. Diz-se mal do PREC, mas foi uma altura em que se levou cultura às aldeias. E nessa altura houve grandes políticos. Homens como Lucas Pires já não voltam a aparecer, como Maria de Lourdes Pintasilgo. Depois entrou-se numa era do Durão Barroso, Cavaco, Sócrates, tudo uma malta sem preparação nenhuma.
Quem são as figuras de referência na sua vida?
Como criança, foi o meu mestre carpinteiro. Escrevi um livro chamado 'O Cheiro da Madeira', em volta do mestre Roberto. Uma criança com quatro ou cinco anos perceber que se podem fazer coisas da madeira... Foi de tal maneira importante que durante muito tempo comprei ferramentas. Em Paris ia ver as novidades de ferramentas; muitas não cheguei a usá-las, mas era o fascínio de ter. Serrar e sentir o cheiro da resina. Mas ainda fiz muitos móveis, prateleiras.
Um homem habilidoso.
Um operacional, sim. No liceu, foi o professor de Ciências de que já falei. Já profissional, o prof. Orlando Ribeiro, geógrafo, mas que percebia a linguagem dos geólogos. E ao mesmo tempo tinha uma conduta cívica, cultural, muito especial. Corrigiu o meu doutoramento datilografado. Aprendi muito com ele na escrita e nas ideias. São três referências.
Qual foi o melhor conselho que lhe deram?
Há uma frase que já não sei se é minha ou de um professor que tive a Matemática - às vezes pergunto-me se não é algo que nasceu na minha cabeça. Reprovei a Matemática no sétimo ano do liceu, repeti o ano só para fazer Matemática e tive este professor. A frase é esta: a matemática é como uma escada, sobes um degrau e só depois de teres o pé bem assente é que sobes para o outro. E fazes assim do segundo para o terceiro, do terceiro para o quarto. Se fizeres assim, sobes onde tu quiseres. Passos firmes. E isto é válido para todas as ciências, para todas as disciplinas.