Elísio Summavielle ‘Nunca fui velho do Restelo’

Elísio Summavielle estava longe de adivinhar que um dia lideraria a obra que mais tinta fazia correr nos jornais. Estávamos no início da década de 90 e Portugal estava a mudar. Íamos receber a presidência da Comunidade Europeia em 92, Lisboa ainda não tinha uma grande sala de congressos e os equipamentos culturais eram escassos.…

Elísio Summavielle ‘Nunca fui velho do Restelo’

Continua a definir-se como funcionário público. E, parece-me, fá-lo com orgulho. Estou correta?

Sim, são 36 anos de serviço público ininterrupto e em exclusividade, agora com este último desafio [liderar o CCB] que já não esperava no fim da minha carreira, mas que é também serviço público, do meu ponto de vista. 

E estamos aqui a conversar entre um feriado e o fim de semana. Não faz ponte propositadamente para dar o exemplo?

(risos) Vamos lá ver, ninguém é santo. Gosto destes dias porque são mais tranquilos, sem tanta agitação, o que me dá tempo para olhar para as coisas com mais profundidade e preparar a semana que vem, que é intensa. Este período, de abril até julho, são meses intensos no CCB e é sempre precisa uma gestão muito fina de todos estes eventos, com muito rigor entre despesas e receitas, afinal estamos numa conjuntura muito diferente. 

Como planeia as suas semanas? Faz questão de estar em todos os eventos do CCB, que tem uma agenda vastíssima?

Não consigo, se fosse a todos não tinha tempo para trabalhar (risos). Vou a alguns, até por uma questão pessoal. De resto, tento organizar as minhas semanas de uma maneira que já é tradicional para mim: um dia por semana trabalho quase isolado com os meus colegas do conselho de administração; depois há um dia a que chamo, a brincar, de aviário, em que trato dos pedidos de reuniões, de apresentações de projetos, e depois os outros dias são normais, em que circulo muito pela casa e acompanho a atividade desta rapaziada. Felizmente é gente nova, com uma média etária de 39 anos o que para mim foi uma excelente surpresa quando cheguei, porque venho de uma Direção Geral em que a média etária está nos 55 anos, e eu já tenho também 61, às vezes parece um centro de dia (risos). Infelizmente, a administração pública está muito necessitada de refrescamento de quadros, há 20 anos que isto é uma agonia lenta. Esperemos que haja melhores dias.

Que diferenças encontrou então nesses colegas mais jovens relativamente à sua própria forma de trabalhar?

Vejo estímulo, vejo vontade de fazer, vejo otimismo, não vejo alguma descrença, o deixar cair. 

Disse numa entrevista ao jornal i que a época em que trabalhou com João Soares na Câmara de Lisboa foi a melhor fase profissional da sua vida. Estes dois anos que leva de CCB já fazem sombra a essa altura?

Não é comparável. Fui para a CML, em 1990, quando João Soares era o vereador da Cultura. Ele tinha tido recentemente aquele acidente em África e fui recrutado para ir tomando conta de alguns assuntos do pelouro. Estive na CML até 1996 e foram anos fantásticos porque estava tudo por fazer. Do ponto de vista cultural nem sequer existiam departamentos. Havia uma coisa que era a 5.ª repartição, que se ocupava dos assuntos culturais da câmara . Depois houve ainda a Lisboa’ 94 que foi um momento alto e talvez pioneiro na internacionalização da cidade, que foi a Capital Europeia da Cultura. Fiz parte do comissariado, nomeado por Jorge Sampaio, que era o presidente da CML. Foram anos muito estimulantes, a trabalhar de dia e de noite. 94 foi um ano fantástico. Conduzi a Sétima Colina, um daqueles projetos que para mim está no altar, e que foi uma intervenção urbana naquele eixo que vai do Rato até ao Cais do Sodré, abarcando todo o Bairro Alto, em que com aquela gente toda se fez ‘a movida’, que infelizmente hoje já é uma coisa de multidões. Começou com o meu saudoso Manuel Reis, o Hernani, o Mário Pilar, etc. Tudo isso aconteceu nesse tempo, e depois houve uma intervenção forte ao longo de três quilómetros dos edifícios com cores, que deu a célebre polémica das cores da Sétima Colina, que andava tudo no rosa desmaiado… Bem, foi uma operação urbana muito interessante integrada com todos os componentes de reabilitação e animação cultural. Todo esse eixo é riquíssimo, os últimos 150 anos da História de Portugal decidiram-se ali, até o 25 de Abril, no Largo do Carmo.

Que recordações guarda desse tempo?

Por exemplo, o primeiro concerto do Pedro Abrunhosa em Lisboa foi ao ar livre, no alto de Santa Catarina, na Sétima Colina. Mas todo esse período da Lisboa’94 foi muito estimulante. Fui depois mais tarde autarca e fui candidato a uma Câmara [Mafra] em 2013, faltava-me o desafio de ir a votos e perdi. A força política naquele concelho é a mesma há décadas, mas apesar de tudo tive o melhor resultado de sempre na oposição. E numa autarquia o trabalho é um trabalho de proximidade muito grande com as pessoas. Na administração central, que é a maior parte da minha carreira, há uma distância maior, há um lado mais normativo. Essa paixão pelas pessoas existe mais no âmbito autárquico, por isso é que digo que esses anos na CML me marcaram muito e marcaram muito o meu posicionamento futuro em termos de trabalho. E… tinha 30 e tal anos (risos).

Como era essa Lisboa, não tinha turistas?

Havia turistas! Mas ainda era aquele modelo do turismo do sol e praia. Agora era uma cidade degradada do ponto de vista físico, com um processo de abandono do centro e ida para a periferia, onde se estavam a construir bairros sociais. Existiam chagas, como o Casal Ventoso, que acabaram, mérito do João Soares. E havia ambiente de pobreza e miséria humana quase no centro da cidade. Havia zonas diferenciadas, uma espécie de Broadway que era o Parque Mayer, que ainda funcionava, a rua das Portas de Santo Antão com o Coliseu e o Politeama e o Bairro Alto, a zona das boémias, numa altura em que quase todos os jornais ainda lá funcionavam. Foi ali que fiz as minhas boémias dos anos 70 quando estava na faculdade e que conheci muita gente naqueles pequenos bares que foram aparecendo depois do 25 de Abril. O Cais do Sodré era muito conotado com os marinheiros e a prostituição, nada do que é hoje. Era uma Lisboa diferente. Depois tinha uma parte mais cosmopolita, que era o bairro onde nasci, cresci e vivi até um passado recente, que era o eixo Avenida de Roma/João XXI mas que não era visitado. Tinha os seus templos, os cafés, que na altura eram pontos fundamentais. O Vá-Vá era um grande escritório, parte da minha adolescência. Ainda la tem os azulejos da Menez.

Menez que também está aqui no seu gabinete.

Sim, escolhi este quadro dela para substituir o que cá estava. Gosto muito da Menez. Mas o Vá-Vá era um centro muito importante e a minha precoce entrada na política, aos 14 ou 15 anos, deu-se lá. Fui recrutado (risos). Havia um movimento associativo nos liceus do qual fiz parte e depois aos 15 sou expulso do liceu.

Comportamentos subversivos?

(risos) Na altura eram faltas de material! Não foi uma expulsão formal: cheguei ao fim do ano e nenhum liceu de Lisboa me aceitou a matrícula, era uma coisa mais sonsa. Acabei por fazer o resto do liceu no Colégio Moderno, que me deu asilo. Concluo o secundário no ano do 25 de Abril e entro para a Faculdade em 75.

Quis sempre seguir História, como fez na Faculdade de Letras de Lisboa?

Tive sempre a paixão da História. Quando era miúdo queria ser arquiteto como o meu pai e até tinha algum jeitinho para o desenho, mas tive toda a vida uma relação péssima com a Matemática. Por ironia, a minha vida agora é olhar para o Excel e ver as continhas todas certas. O meu pai era rigorosíssimo, e desenhava muito bem. A certa altura, como os ‘meninos’ iam para Direito, ainda pensei nisso. Mas quando chegou a altura da matrícula resolvi fazer aquilo de que gostava, e portanto fui para a Faculdade de Letras tirar História. Especializei-me em História da Arquitetura, por isso acabei por juntar as duas coisas, mas como costumo dizer sou de clínica geral. O Património cultural para mim é uma soma de várias partes e disciplinas, e embora eu tecnicamente seja mais habilitado na arquitetura, consigo tocar todos esses pontos e tenho uma visão mais generalista do património.

Qual o edifício português que mais o impressiona? Tiremos já o CCB da tentação da resposta.

Há um espaço que, para mim, é único a nível mundial, que é o Claustro do Mosteiro dos Jerónimos. Tem aquele balcão avançado, envolve um período fantástico na nossa História. Estou a ver as representações vicentinas no claustro como se fosse um teatro… É um espaço magnífico, com uma decoração única que mistura culturas. Depois temos outras coisas fabulosas, como a nave do mosteiro de Alcobaça, que é fantástica. 

O projeto do CCB, como todas as grande obras, polarizou a opinião pública. Em que lado da barricada estava há 25 anos?

Essas polémicas e a arquitetura do CCB vão ser agora editadas em livro no âmbito dos 25 anos. É uma compilação de textos com fotografias do processo construtivo – aliás, se passearmos agora no CCB podemos ver uma série de fotografias dessa época, de quando se fizeram as terraplanagens, as infraestruturas, etc. Acompanhei muito de perto este processo porque estava como técnico no então IPPC, o Instituto Português do Património Cultural. Só havia dois ou três historiadores na altura, e eu era o historiador de serviço aqui para este processo. E, ao contrário de muita gente, alimentei sempre uma expectativa positiva sobre este projeto. Modéstia à parte, nunca fui velho do Restelo, vejo sempre as coisas com otimismo mesmo que signifiquem mudanças. Quando vi a segunda fase e os concorrentes que tinham sido aprovados quase não tive dúvidas de que seria este o projeto vencedor. E era um excelente projeto.

O que o fez ter essa certeza?

Para já era um júri de grande qualidade e critério. Depois este sítio necessitava de uma intervenção, era uma lixeira. As pessoas têm memória curta. Depois era o facto de ser ao lado dos Jerónimos, o ‘mamarracho’, uma coisa inaudita, o centro comercial de Belém, como diziam… Mas o que é certo é que Lisboa, naquele tempo, não tinha um centro de congressos. Portugal ia ter a presidência da Comunidade Europeia em 92, era um equipamento cultural que faltava à cidade e portanto começou por ser a sede nesse ano. Aqui onde estou esteve o Jacques Delors em tempos, houve aqui a passagem de grandes figuras. E o projeto do Vittorio Gregotti e do Manuel Salgado é de excelência, porque é um edifício que será sempre moderno. Segue uma lógica quase pombalina, é ortogonal: tem uma avenida principal que atravessa todo o CCB, o chamado caminho José Saramago, e depois tem as confluências. E depois são cubos decompostos, uns mais altos do que outros, sendo o mais alto correspondente do Grande Auditório. E depois este revestimento de lioz de Pero Pinheiro dá-lhe uma característica mediterrânica, digamos assim. Ou seja, está perfeitamente enquadrado com o lugar, não rompe abruptamente com a linguagem do sítio, sendo um edifício separado por séculos relativamente ao Mosteiro dos Jerónimos. 

Acha que valoriza os edifícios circundantes?

Acho que sim. É um elemento distintivo e valorizador e que veio acrescentar muito ao eixo monumental de Belém. 

Vê o novo museu dos Coches da mesma forma?

(risos) Na altura em que foi lançada a obra eu tinha responsabilidades, estava no IGESPAR. É um projeto de natureza diferente. Enfim, considero este projeto de excelência, e aquele, pessoalmente, não me entusiasma muito, sobretudo a ligação com o sítio. Estando dentro do museu, já não tenho dúvidas nenhumas de que é um excelente projeto de arquitetura. Por fora, já parece uma massa demasiado impositiva. Mas isto é uma opinião pessoal, com toda a subjetividade… É um prémio Priztker. 

Sendo o seu pai arquiteto, qual foi a opinião dele, na altura, sobre o projeto do CCB?

Não teve dúvidas em considerar este o melhor projeto dos que tinham sido apresentados a concurso. O meu pai tinha uma grande amizade com o grande mestre que fez os interiores desta casa, o Daciano da Costa, que tive o prazer de conhecer toda a vida e que me trouxe aqui várias vezes durante o período de construção. Sou coca-bichinhos, gosto de ir ver obras, e este projeto, com a arquitetura Gregotti-Salgado e os interiores Daciano, que fez desde as cadeiras aos sofás, tinha uma grande marca de qualidade e de coerência, pelo que o meu pai sempre o viu com bons olhos. E mesmo de outros projetos do período pós moderno, que foram malditos na altura e que esteticamente não me dizem muito, como o complexo das Amoreiras, do Tomás Taveira. Quando se falar dos anos 80 tem que se falar daquilo, é uma referência. A prova é que hoje ainda funciona e, tenho que dizer isto, é talvez o único centro comercial onde gosto de passear e que se mantém. É um edifício extremamente coerente com o pensamento pós-moderno que introduz uma novidade relativamente ao período moderno no fazer cidade, que é construir – e isso foi uma coisa que aprendi com o Sétima Colina quando vimos que, tirando um monumento ou outro, nada estava classificado. Durante duzentos anos, desde o Rato ao Cais do Sodré, só existiam quatro edifícios do século XX. E como é que isto se manteve? Quando fomos ver a função dos edifícios, percebemos que havia uma distribuição quase igualitária entre habitação, serviços e comércio. Ou seja, nos anos 60, 70 e ainda de certo modo nos anos 80 faziam-se as cidades dormitório, mas era a mistura destas três funções que garantia conservação e vida. O que se fez nas Amoreiras foi isso, e essa é a mensagem urbana positiva do pós-modernismo. 

Essa equação é também a que quer aplicar no CCB, com o término do complexo turístico projetado desde o início?

Exato. No fundo, trata-se de concluir o projeto original, que previa a construção de uma unidade hoteleira e de uma galeria comercial ou de serviços que vai criar aqui uma âncora. Temos o hotel Altis do outro lado com 40 quartos, há a Casa do Governador com umas dezenas e este será um grande hotel com 140 ou 150 quartos, dependendo do promotor. Juntamente com a tal galeria, isto fará cidade e vai certamente beneficiar toda esta área. A esta hora [aponta pela janela] tem aquelas procissões de turistas, mas chega às 18h00 e é um deserto. Agora, felizmente, já temos no CCB aqui o Bar Terraço, mas acabavam os concertos e não havia um sítio para as pessoar irem beber um copo e conviver. Apesar de ser um eixo muito rico do ponto de vista cultural não tem vida – e as cidades têm que ter pessoas. Li uma entrevista grande do Gregotti em 92 à Ana Sousa Dias, na extinta Pública, em que ele dizia que queria fazer uma cidade aberta. Daí o CCB- Cidade Aberta: às pessoas, à cultura, à promoção. Queremos que isto seja animado todo o dia e noite.

O concurso para este projeto iria ser lançado até ao verão. Em que ponto estamos?

É um concurso internacional, tenho a ambição de lançar o procedimento antes de agosto, se não for possível será em setembro. Tudo o que era necessário fazer a montante, desde a questão da regularização dos terrenos, que era uma trapalhada enorme – havia registos prediais que não coincidiam, buracos nos registos -, está praticamente feito. Foi uma via sacra de quase dois anos junto das Finanças. Estamos a preparar o caderno de encargos, o programa de concurso. Tudo o que depende de nós gostava que estivesse pronto até ao final de julho. Até porque este é um objetivo estratégico para futuro do CCB.

Quando iniciou este mandato afirmou que um dos seus objetivos era sair daqui com este projeto feito. 

Era. Não pensei que fosse tão difícil (risos). Pensei que o caminho estava feito, mas também entendo que não tenha sido feito ao longo destes 25 anos por uma razão muito prosaica: a subvenção anual que o Estado dava à Fundação CCB era generosa e portanto não implicava esse esforço. Mas esse rendimento que a Fundação irá ter da construção e exploração destes espaços novos é um rendimento considerável que, além de nos equilibrar melhor as finanças internas, não onera mais os contribuintes. A [atual] subvenção continua a ser troikiana e acho que esta casa pode ser sustentável a partir daí, com um rendimento mais confortável e uma programação cultural mais de acordo com a ambição internacional destes equipamentos. Temos um auditório único em termos nacionais, é um equipamento de excelência que merece ter uma programação à altura. 

Já falou várias vezes do equilíbrio orçamental. As contas são o grande desafio?

Tenho fama de ser judeu, no bom sentido (risos), e de ser muito cauteloso. Ou é a minha sina ou ao longo dos 17 anos em que fui dirigente entrei em algumas casas complicadas de um ponto de vista financeiro que ficaram arrumadinhas. Missão cumprida.

Para quem assume que odeia Matemática…

Essa é uma história curiosa que tenho na minha vida. Antigamente, nos anos 60, quando chegávamos aos 12 anos, havia os testes psicotécnicos da Fundação Gulbenkian. Quando fiz dizia que a minha vocação era Gestão ou Economia, e eu que me esfalfava para ter um 10 a Matemática! Passados estes anos todos olho para trás e, na parte do diagnóstico de gestão, dou-lhes alguma razão (risos). Mas contas de somar e dividir sei fazer e tive uma educação austera a esse respeito. Isto para lhe responder à questão do desafio. Houve alturas em que o Estado dava entre 10 e 11 milhões de euros à Fundação CCB, e depois passaram a sete.

Que é o que recebem agora.

Exato. Só que entre eletricidade, limpeza, segurança, água, salários… Os custos fixos de funcionamento são à volta de 8,1 milhões, portanto o que o Estado nos dá não chega. Há uma atividade comercial de alugueres para congressos e é com esse rendimento que podemos equilibrar as contas e fazer uma programação prudente. Este fio da navalha tem que ser muito monitorizado. Apresentámos na semana passada a próxima temporada e houve alguma melhoria na receita comercial, fruto do trabalho aqui da minha colega Isabel Cordeiro responsável por essa área, com a Luísa Taveira que tem a parte da programação. Costumo dizer que tenho uma administradora que ganha e outra que gasta (risos).

Pensam a programação de forma a trazer proveito económico para a Fundação?

Há situações em que a receita cobre a despesa. Por exemplo, fiz uma aposta que foi no início pessoal mas que hoje é um sucesso que foi o Belém Cinema, que são filmes clássicos, restaurados e projetados em grande ecrã nos novos formatos 4k, como por exemplo E Tudo O Vento Levou. As pessoas têm saudades deste cinema, com intervalo como havia dantes, sem cheiro a pipocas, etc. Ainda ontem tivemos o Breakfast at Tiffany’s e a sala estava basicamente esgotada. É evidente que a sala cheia cobre o aluguer do filme, mas se tivermos uma companhia de dança ou uma orquestra sinfónica de jazz de renome… É por isso que o Estado nos dá a subvenção: temos preços sociais, temos uma missão estatutária. Por isso, por um lado, há que garantir o máximo de receita, por outro essa diferença social entre coisas que são mais caras de contratar faz parte da nossa missão. Para ir ao galinheiro do Altice Arena ver Bob Dylan paguei 70 euros, e estava esgotado. Aqui não temos nada desses valores, o máximo andará pelos 30 euros para as melhores plateias. Há uma diferença entre uma atividade comercial pura e dura como são estes mega-concertos e o que fazemos aqui. Portanto a nossa receita tem que vir da atividade comercial e, às vezes, temos que garantir a disponibilidade de salas para os grandes congressos, que podem render 80.000 euros. Se a subvenção fosse mais generosa podia dispensar alguma atividade comercial, mas não posso. O hotel, pelo menos, vai ser um complemento que nos permite cobrir o funcionamento. 

Cada vez se ouve mais jazz na programação do CCB. Em setembro, vão receber a European Jazz Conference. Sendo um conhecido apreciador de jazz, estas foram opções suas? 

Sou o sócio 34 do Hot Clube de Portugal, qualquer dia estou morto que eles vão limpando os cartões! Mas nós temos programadores na área da música – o André Cunha Leal e o Luís Sampaio, que também gosta de jazz. Tento não interferir, às vezes digo uma ou outra coisa de que gosto mas não quero influenciar a programação. A única coisa onde meto o dedo é mesmo no Belém Cinema e no ciclo Literatura e Pensamento, outra atividade que estamos a desenvolver.

E como está a correr, tem havido adesão?

Está a correr bem. Parece-me que a História está na moda, as pessoas gostam de todos os ciclos de História e esgotam salas. Depois também gostam de efemérides, por exemplo quando fez 50 anos que o Aquilino editou a Casa Grande de Romarigães, ou quando fez um ano que o Batista Bastos morreu. Aqui também não há cinemas à volta. Mas demograficamente Portugal tem um público grisalho, pessoas que estão perfeitamente sãs e que vêm a estes eventos e a debates políticos, como foi o que organizámos em torno do Maio de 68; ou os 100 anos da Revolução Russa. Também vamos ter de história da música, com o Zé Duarte a contar a história do jazz em quatro sessões em outubro e novembro. De um modo geral, outros dois ciclos que tiveram grande adesão foram o ‘Quase Toda Uma Vida’, em que a Anabela Mota Ribeiro faz entrevistas de vida com seniores que marcaram de alguma forma a nossa história. São testemunhos importantíssimos, que estão a ser gravados pela Cláudia Varejão, uma jovem e talentosíssima cineasta, para depois os podermos passar para fora das paredes do CCB; e o ‘2084 – Imagine’, em que a Graça Castanheira falou com uma série de figuras da ciência que especulam sobre o futuro. Estes dois ciclos têm sido um sucesso em termos de público.

Falou logo no início da nossa conversa sobre Manuel Reis, que desafiou para organizar a grande festa dos 25 anos do CCB.

Era amigo do Manuel Reis, entre os milhares que ele tinha. Criámos uma cumplicidade grande na Lisboa’94. Liguei-lhe em fevereiro, já não nos víamos há uns tempos, que já não tenho idade para ir ao Lux, e disse-lhe que precisava de ajuda dele para a festa que vamos aqui fazer no dia 10 de julho, uma festa aberta a todos na praça CCB. E o Manuel Reis tinha um know-how grande nisto, disse-me com certeza, combinámos almoçar em abril e ele morre em março. Não me disse que estava doente. Telefonou-me quando vim para o CCB para me dar os parabéns, e nessa altura até me meti com ele e disse que precisava de um Lux aqui perto, que isto era um deserto, faz falta um equipamento destes a ocidente. Respondeu-me assim: ‘Nunca se sabe’. Infelizmente morreu, mas a festa vai para a frente. Até por ele. 

E faz falta um Museu da Viagem? Como vê esta polémica logo na nomenclatura?

O meu professor e velho mestre António José Saraiva dizia que Portugal era um penico e que a última letra d’ Os Lusíadas é a inveja, portanto qualquer coisa que se faça gera uma série de polémicas, que no fundo são protagonismos que se querem impor em determinado sentido. Na altura em que passei pela secretaria de Estado da Cultura havia uma proposta que defendia – e fui atacadíssimo, corporativamente – de a Marinha ceder à Cultura a Cordoaria Nacional, em troca de uma ala dos Jerónimos que ficaria para a Marinha, com um projeto conjunto que seria batizado como ‘O Cais da História’. Portugal não tem, à escala, um museu da dimensão dos grandes museus europeus. O Mário Cesariny dizia que era preciso fechar os museus todos para termos um museu à escala europeia. Portanto, um museu dos Descobrimentos implicava esvaziar no verdadeiro sentido da palavra alguns outros museus – começando logo pelos painéis de São Vicente do Museu de Arte Antiga, que são dos mais referenciados em termos de Descobrimentos; ou o do Azulejo, ou o Machado de Castro em Coimbra, enfim. Portanto, a palavra museu não me entusiasma. Já um espaço com as novas tecnologias, com um guião muito bem feito que mostrasse quem somos nós, uma espécie de bilhete de identidade… Percebo essa necessidade. Quem nos visita não tem um sítio que explique quem são estes tipos. Esta ideia do Cais da História, ou do Museu da Viagem ou seja o que for já me agrada mais do que um Museu dos Descobrimentos porque isso é uma ficção. 

Tem aqui atrás de si as ‘Três Idades’ da Menez, o CCB faz 25 anos. Em que idade está este projeto?

Acho que já está na segunda, já tem uma experiência considerável e consolidada. Temos aqui ainda alguns funcionários que estão cá desde o início, embora a média etária seja jovem, e cuja experiência é muito importante. Aqui tenho que destacar um aspeto: a equipa que faz a manutenção e conservação do espaço, muito meticulosa, que é conduzida pelo engenheiro António Ribeiro e que ama mais este edifício do que a própria vida, como eu lhe digo. Quem olhar para o CCB é como se tivesse sido acabado de construir, e isso implica um grande esforço. É um trabalho invisível e eu, que conheço património, sei que aquilo que não se vê não dá direito a croquetes e inaugurações, como é o caso da conservação e manutenção. Há alguns edifícios muito mais recentes, como o da CGD, e veja-se a diferença. E há mais.

Esta nomeação será o seu último grande projeto ou ainda se vê a fazer algo de relevo no Património?

O meu pai, e eu herdei dele esta coisa do serviço público, dizia: «Só vou aos 70 com um pontapé no rabo, aturem-me». Não quero reformas antecipadas, gosto muito de ser técnico superior e como dirigente já nem esperava este desafio último. Mas tenho alguns planos. No CCB logo se verá: três anos passam a correr e a minha comissão acaba em março do ano que vem. Costumo dizer que só Deus sabe e eu não tenho acesso à informação porque sou agnóstico.

Gostava de ser reconduzido numa segunda comissão no CCB?

Só conto com aquilo que depende de mim.

Mas estaria disponível para continuar?

Mais uma vez: só Deus sabe e eu não tenho acesso à informação. Mas é evidente que há alguma adrenalina e que é sempre desafiante trabalhar nesta casa. Mas não faço isso uma questão de vida. As coisas no meu caminho aconteceram, nunca me pus em bicos dos pés. Gosto muito de escrever, gostava de voltar a escrever. Tenho um romance na gaveta há uns anos e gostava de voltar a escrever a minha coluna no jornal i, dava-me gozo. Mas quando vim para aqui tive que deixar, estando num lugar público tive que me conter – e para falar de gravatas…

Que quase nunca usa?

Está ali na gaveta. No inverno até uso porque aconchega o pescoço, e depois há um lado protocolar aqui na vida da casa que é necessário cumprir. Não tenho nenhum preconceito, mas gosto de desengravatar o trabalho.