Continua a definir-se como funcionário público. E, parece-me, fá-lo com orgulho. Estou correta?
Sim, são 36 anos de serviço público ininterrupto e em exclusividade, agora com este último desafio [liderar o CCB] que já não esperava no fim da minha carreira, mas que é também serviço público, do meu ponto de vista.
E estamos aqui a conversar entre um feriado e o fim de semana. Não faz ponte propositadamente para dar o exemplo?
(risos) Vamos lá ver, ninguém é santo. Gosto destes dias porque são mais tranquilos, sem tanta agitação, o que me dá tempo para olhar para as coisas com mais profundidade e preparar a semana que vem, que é intensa. Este período, de abril até julho, são meses intensos no CCB e é sempre precisa uma gestão muito fina de todos estes eventos, com muito rigor entre despesas e receitas, afinal estamos numa conjuntura muito diferente.
Como planeia as suas semanas? Faz questão de estar em todos os eventos do CCB, que tem uma agenda vastíssima?
Não consigo, se fosse a todos não tinha tempo para trabalhar (risos). Vou a alguns, até por uma questão pessoal. De resto, tento organizar as minhas semanas de uma maneira que já é tradicional para mim: um dia por semana trabalho quase isolado com os meus colegas do conselho de administração; depois há um dia a que chamo, a brincar, de aviário, em que trato dos pedidos de reuniões, de apresentações de projetos, e depois os outros dias são normais, em que circulo muito pela casa e acompanho a atividade desta rapaziada. Felizmente é gente nova, com uma média etária de 39 anos o que para mim foi uma excelente surpresa quando cheguei, porque venho de uma Direção Geral em que a média etária está nos 55 anos, e eu já tenho também 61, às vezes parece um centro de dia (risos). Infelizmente, a administração pública está muito necessitada de refrescamento de quadros, há 20 anos que isto é uma agonia lenta. Esperemos que haja melhores dias.
Que diferenças encontrou então nesses colegas mais jovens relativamente à sua própria forma de trabalhar?
Vejo estímulo, vejo vontade de fazer, vejo otimismo, não vejo alguma descrença, o deixar cair.
Disse numa entrevista ao jornal i que a época em que trabalhou com João Soares na Câmara de Lisboa foi a melhor fase profissional da sua vida. Estes dois anos que leva de CCB já fazem sombra a essa altura?
Não é comparável. Fui para a CML, em 1990, quando João Soares era o vereador da Cultura. Ele tinha tido recentemente aquele acidente em África e fui recrutado para ir tomando conta de alguns assuntos do pelouro. Estive na CML até 1996 e foram anos fantásticos porque estava tudo por fazer. Do ponto de vista cultural nem sequer existiam departamentos. Havia uma coisa que era a 5.ª repartição, que se ocupava dos assuntos culturais da câmara . Depois houve ainda a Lisboa’ 94 que foi um momento alto e talvez pioneiro na internacionalização da cidade, que foi a Capital Europeia da Cultura. Fiz parte do comissariado, nomeado por Jorge Sampaio, que era o presidente da CML. Foram anos muito estimulantes, a trabalhar de dia e de noite. 94 foi um ano fantástico. Conduzi a Sétima Colina, um daqueles projetos que para mim está no altar, e que foi uma intervenção urbana naquele eixo que vai do Rato até ao Cais do Sodré, abarcando todo o Bairro Alto, em que com aquela gente toda se fez ‘a movida’, que infelizmente hoje já é uma coisa de multidões. Começou com o meu saudoso Manuel Reis, o Hernani, o Mário Pilar, etc. Tudo isso aconteceu nesse tempo, e depois houve uma intervenção forte ao longo de três quilómetros dos edifícios com cores, que deu a célebre polémica das cores da Sétima Colina, que andava tudo no rosa desmaiado... Bem, foi uma operação urbana muito interessante integrada com todos os componentes de reabilitação e animação cultural. Todo esse eixo é riquíssimo, os últimos 150 anos da História de Portugal decidiram-se ali, até o 25 de Abril, no Largo do Carmo.
Que recordações guarda desse tempo?
Por exemplo, o primeiro concerto do Pedro Abrunhosa em Lisboa foi ao ar livre, no alto de Santa Catarina, na Sétima Colina. Mas todo esse período da Lisboa’94 foi muito estimulante. Fui depois mais tarde autarca e fui candidato a uma Câmara [Mafra] em 2013, faltava-me o desafio de ir a votos e perdi. A força política naquele concelho é a mesma há décadas, mas apesar de tudo tive o melhor resultado de sempre na oposição. E numa autarquia o trabalho é um trabalho de proximidade muito grande com as pessoas. Na administração central, que é a maior parte da minha carreira, há uma distância maior, há um lado mais normativo. Essa paixão pelas pessoas existe mais no âmbito autárquico, por isso é que digo que esses anos na CML me marcaram muito e marcaram muito o meu posicionamento futuro em termos de trabalho. E... tinha 30 e tal anos (risos).
Como era essa Lisboa, não tinha turistas?
Havia turistas! Mas ainda era aquele modelo do turismo do sol e praia. Agora era uma cidade degradada do ponto de vista físico, com um processo de abandono do centro e ida para a periferia, onde se estavam a construir bairros sociais. Existiam chagas, como o Casal Ventoso, que acabaram, mérito do João Soares. E havia ambiente de pobreza e miséria humana quase no centro da cidade. Havia zonas diferenciadas, uma espécie de Broadway que era o Parque Mayer, que ainda funcionava, a rua das Portas de Santo Antão com o Coliseu e o Politeama e o Bairro Alto, a zona das boémias, numa altura em que quase todos os jornais ainda lá funcionavam. Foi ali que fiz as minhas boémias dos anos 70 quando estava na faculdade e que conheci muita gente naqueles pequenos bares que foram aparecendo depois do 25 de Abril. O Cais do Sodré era muito conotado com os marinheiros e a prostituição, nada do que é hoje. Era uma Lisboa diferente. Depois tinha uma parte mais cosmopolita, que era o bairro onde nasci, cresci e vivi até um passado recente, que era o eixo Avenida de Roma/João XXI mas que não era visitado. Tinha os seus templos, os cafés, que na altura eram pontos fundamentais. O Vá-Vá era um grande escritório, parte da minha adolescência. Ainda la tem os azulejos da Menez.
Menez que também está aqui no seu gabinete.
Sim, escolhi este quadro dela para substituir o que cá estava. Gosto muito da Menez. Mas o Vá-Vá era um centro muito importante e a minha precoce entrada na política, aos 14 ou 15 anos, deu-se lá. Fui recrutado (risos). Havia um movimento associativo nos liceus do qual fiz parte e depois aos 15 sou expulso do liceu.
Comportamentos subversivos?
(risos) Na altura eram faltas de material! Não foi uma expulsão formal: cheguei ao fim do ano e nenhum liceu de Lisboa me aceitou a matrícula, era uma coisa mais sonsa. Acabei por fazer o resto do liceu no Colégio Moderno, que me deu asilo. Concluo o secundário no ano do 25 de Abril e entro para a Faculdade em 75.
Quis sempre seguir História, como fez na Faculdade de Letras de Lisboa?
Tive sempre a paixão da História. Quando era miúdo queria ser arquiteto como o meu pai e até tinha algum jeitinho para o desenho, mas tive toda a vida uma relação péssima com a Matemática. Por ironia, a minha vida agora é olhar para o Excel e ver as continhas todas certas. O meu pai era rigorosíssimo, e desenhava muito bem. A certa altura, como os ‘meninos’ iam para Direito, ainda pensei nisso. Mas quando chegou a altura da matrícula resolvi fazer aquilo de que gostava, e portanto fui para a Faculdade de Letras tirar História. Especializei-me em História da Arquitetura, por isso acabei por juntar as duas coisas, mas como costumo dizer sou de clínica geral. O Património cultural para mim é uma soma de várias partes e disciplinas, e embora eu tecnicamente seja mais habilitado na arquitetura, consigo tocar todos esses pontos e tenho uma visão mais generalista do património.