Foi por causa da leitura dos livros de James Herriot sobre a vida de um veterinário na Inglaterra rural que Gonzalo Giner escolheu a sua profissão. Hoje o espanhol divide os seus dias entre visitas a estábulos na região de Castela e a escrita. As Janelas do Céu (ed. Planeta), o seu primeiro romance publicado em Portugal, debruça-se sobre a arte do vitral na Idade Média.
TEXTO | José Cabrita Saraiva
FOTOGRAFIAS | Bruno Gonçalves
O seu primeiro romance também se passa na Idade Média e tem como protagonista um tratador de cavalos. Já havia veterinários nessa época?
Sim, a profissão veterinária é muito, muito antiga. As primeiras referências de operações e trabalhos de veterinário já aparecem no código de Hamurabi [conjunto de leis da Mesopotâmia, datado de há cerca de quatro mil anos]. Na Pérsia e no Egipto Antigo sabemos que também já havia profissionais que se dedicavam à cura dos animais. Na Idade Média, aqui mesmo na Península Ibérica, produziu-se algo único com a nossa profissão que teve que ver com a presença árabe-muçulmana. Digamos que todo o saber médico desde o século XI, XII, começou a vir do Sul. Tudo o que tinha sido recolhido das bibliotecas persas, do saber científico grego e romano entra na Península Ibérica através de traduções feitas pelos muçulmanos. Então cria-se uma denominação da profissão veterinária: alveitar, que em árabe significa ‘curador de bestas’, no sentido de animais em geral. E durante toda a Idade Média tiveram uma importância enorme.
Os cães, por exemplo, eram essenciais para a caça e os cavalos eram os automóveis daquela época…
Sim, os cavalos eram o meio de transporte mais comum e também autênticas máquinas de guerra. Ainda assim, a profissão de alveitar era pouco conhecida entre nós, e então escrevi o romance El Sanador de Caballos [O Tratador de Cavalos], que conta uma história que tem que ver com um alveitar, num contexto de guerras - o romance termina em 1212 com a batalha de Navas de Tolosa, em que os cristãos derrotaram os Almóadas. Ao mesmo tempo, tentei mostrar aspetos curiosos da profissão. Por exemplo, utilizavam muitos remédios de origem botânica, mas também era comum usarem fezes para curar. Maceravam, juntavam-lhes outros ingredientes e faziam uma espécie de emplastros.
Este novo romance, As Janelas do Céu, situa-se um pouco mais tarde, no século XV. Qual o motivo para ter voltado a escolher a Idade Média?
O século XV é um momento-chave na história do vitral, em que há uma mudança palpável nas técnicas e na forma como os artistas trabalhavam as pinturas sobre o vidro. Encaro este romance como um convite a viajar até essa época, que atrai muito o público. Mas com uma diferença: esta Idade Média não é sombria, nem escura, nem pobre. Tem luz atrás.
ESCOLHI UM VITRALISTA PARA FIGURA CENTRAL DO ROMANCE, POR QUE SE DÁ POUCA IMPORTÂNCIA AOS MESTRES VITRALISTAS, PARECENDO QUE NÃO ERAM NINGUÉM
Por vezes conseguimos perceber que há ali muito trabalho, mas não o conseguimos apreciar…
Realmente, agora é quando mais os podemos valorizar, porque temos fotografias e até as podemos ampliar e ver os detalhes.
Durante a Idade Média é elaborada uma quantidade de teorias sobre a luz como manifestação da presença divina. Também estudou esse lado simbólico?
Sim, aliás há um aspeto curioso: quando olhamos para uma igreja do lado de fora não se vê nada, não se percebe o que há. Mas quando estás dentro a luz transforma o interior, ilumina o chão e as paredes - com esse efeito não apenas estético mas também espiritual. Davam-lhe esse valor da iluminação divina, da presença de uma Jerusalém Celeste que desceu do céu que é a catedral e o crente recebe a fé através das janelas.
Acha que o artesão tinha noção de tudo isso?
Muita. Quando recebiam encomendas para fazer um conjunto de vitrais iam ao templo, para o ver, para medir, mas também para perceber onde incidia a luz, de onde vinha, e a sua intensidade ao longo do dia. E concebiam todo o projeto adaptado a essas condições específicas. Há um caso que aparece no romance que é a Cartuxa de Miraflores, em Burgos, a tal que foi encomendada pela rainha Isabel, a Católica. Em termos de tamanho os vitrais não são muito espetaculares, mas têm toda a sequência da Paixão de Cristo e da Ressurreição. E está muito bem escolhido, porque as cenas que aparecem do lado poente, onde há menos luz, são as cenas mais duras, mais sombrias, mais negras, as cores que usam e a espessura dos vidros é maior para que exprima obscuridade. Do outro lado é a Ressurreição, o Juízo Final, a Ascensão, e aí as cores mudam de intensidade, há mais amarelos, mais luz, mais brilhos e os vidros são menos espessos. O que às vezes distinguia uma boa oficina era estudar bem a intensidade com que incidia a luz, e a que horas, e saber jogar com isso. Não era fácil, mas quem conseguia dominar todos esses aspetos fazia-se pagar bem.
Qual é, na sua opinião, o melhor sítio da Europa para ver vitrais?
Em Espanha a catedral de Leon é uma das que têm mais quantidade de vidro, e muitos dos vitrais são ainda do século XIII, são muito antigos. Mas, para mim, os melhores locais na Europa são a Sainte-Chapelle, Saint-Denis e Chartres, todos em França. Infelizmente alguns dos locais que aparecem no romance já não existem.
Houve muita destruição de vitrais?
Na Segunda Guerra Mundial [1939-1945], com o que houve de bombardeamentos, imagine o que se perdeu de vitrais. Mas não só. Por exemplo, a catedral de Burgos teve um conjunto de vitrais espetacular, mas quando as tropas de Napoleão estavam de saída da Península Ibérica, em direção a França, mandaram rebentar o castelo que existe no alto da cidade e a onda expansiva foi tão enorme que destruiu todos os vitrais da catedral. Só ficou uma rosácea.
Não sendo historiador, como obteve informação sobre este tema tão específico? Lendo, estudando as igrejas?
Li uma multidão de livros, quase tudo o que está publicado em espanhol e inglês sobre o vitral na Idade Média.
Esses livros não dizem todos mais ou menos o mesmo?
Alguns sim. Mas nuns procurava mais a técnica, noutros como funcionava uma oficina, quais os mestres mais conhecidos, que materiais utilizavam. Ainda assim, por mais que lesse e estudasse continuava com muitas dúvidas sobre como se fabricava e não entendia os processos. Aí tive a sorte de conhecer um mestre de Leon chamado Luis Garcia Zurdo, especialista em vitral medieval, que se formou na Alemanha, um homem mais velho, de oitenta e tal anos. Ele estudou Pintura na Escola de Belas-Artes de Madrid nos anos 50. Era muito bom pintor, teve uma nota excelente, e ganhou uma bolsa para estudar no estrangeiro. Deram-lhe a escolher entre Florença ou a Alemanha e ele escolheu a Alemanha, onde aprendeu com um grande mestre alemão tudo o que havia para aprender sobre a técnica do vitral. Restaurou muitos vitrais de igrejas alemãs destruídos durante a Segunda Guerra e regressou a Espanha como um mestre muito reconhecido. Mas contava-me que quando há uns anos reuniu os poucos companheiros que restavam do seu curso de Belas-Artes, eles lhe diziam: ‘Luís, tu eras muito bom pintor, se tivesses seguido podias ter um nome muito importante na Europa. No entanto ficaste só como mestre vitralista’.
Consideravam-no um ‘artista menor’?
Sim, para muitos o mundo do vitral aparece como um ofício menor, e isto pareceu-me uma enorme injustiça.
O seu romance passa por vários locais da Europa, mas também pela Terra Nova, onde os bascos pescavam baleias e bacalhau, e pelo Norte de África. Temos a ideia de que hoje sim, viajamos com grande facilidade, mas antigamente não. Era normal as pessoas viajarem naquela época?
Não era normal. Mas esta elite dos mercadores de lã era gente muito acostumada a viajar. O mercador que encomenda para Isabel de Castela esses vitrais de que falei tinha delegações comerciais da sua empresa na Lombardia, Itália, na Flandres, em Inglaterra, França. Estamos a falar de um grupo seleto de 20 mercadores e esses sim, tinham capacidade e viajavam. Neste romance há um pai que quer que o filho conheça bem o negócio e então manda o filho em viagem para conhecer todo o processo, desde as pastagens de Castela até às oficinas da Flandres onde eram tecidos os tapetes.
Eram, portanto, homens de negócios?
Sim. Antes da descoberta da América, a grande riqueza de Castela era a lã, era o produto n.º 1 de exportação. O que estes 20 comerciantes faturavam por ano, traduzido para a moeda de hoje, era o equivalente a 1200 milhões de euros, uma barbaridade.