Frei Bento Domingues: ‘Fala-se muito de modernidade e de iluminismo e depois deixamos a vida desenvolver-se nas trevas’

Decidiu tornar-se dominicano aos 13 anos quando ouviu falar um padre brasileiro. E diz que é a única decisão de que não se arrepende. A propósito do seu livro A Religião dos Portugueses, Frei Bento Domingues conversou com o SOL sobre o melhor e o pior de Fátima, as resistências que o Papa encontrou na…

Para quem passa do lado de fora, a construção discreta do convento de São Domingos quase desaparece por detrás do arvoredo. Assim, é provável que o transeunte mais depressa repare nos muros de cimento cobertos de graffitis que ladeiam o passeio do que no edifício modernista que serve de refúgio à Ordem dos Pregadores.
Olhando com alguma atenção, porém, não é difícil reparar numa pesada, quase intimidatória, grade de ferro e numa escadaria que dá acesso aos domínios do convento. Lá em cima, sobre o lado direito de um pátio transformado em parque de estacionamento, há um recesso onde se pode ler a palavra ‘Portaria’. Tocamos à campainha. Assim que o trinco se solta com um som que associaríamos ao de uma cela de prisão a abrir-se, entramos num mundo à parte onde até o ar que se respira parece ser diferente.
Estamos a dois passos da Segunda Circular, do Centro Comercial Colombo e do Estádio da Luz – sinónimos, respetivamente, de filas de trânsito infernais, de compras desenfreadas e de jogos de futebol que atraem dezenas de milhares de adeptos. Mas as paredes do convento, o único construído em Portugal desde 1750, protegem do ruído contemporâneo.
Lá dentro, Frei Bento Domingues dá-nos as boas vindas e mostra-nos uma exposição sobre como a Ordem Dominicana renovou a linguagem da arte religiosa, dando como exemplo o convento de La Tourette, um projeto arrojado de Le Corbusier. «Um dos princípios do Padre Couturier era apostar no génio. Os grandes pintores, como Matisse e Chagall, foram todos convocados», explica Frei Bento.
Terminada em 2005, a igreja do convento lisboeta, da autoria de José Fernando Gonçalves e José Providência, segue essa linha modernista. As paredes de betão à vista desmaterializam-se com as entradas de luz, que criam um ambiente ascético e propício à espiritualidade. Por opção dos arquitetos não há quaisquer imagens à vista – nem mesmo na cruz. Só as paredes, a luz natural e o silêncio.

Este projeto alterou de alguma forma a vida dos irmãos? Quem se mudou para cá sentiu a diferença?

Eu já vivia antes e até tínhamos o convento em andares, na rua Barjona de Freitas.

Num prédio?

Sim. Quando viemos para Lisboa vivíamos em vários sítios, estávamos dispersos porque não havia dinheiro para se fazer um convento. Depois houve a venda do alvará de um colégio na Rua do Salitre e de outra coisa em Aldeia Nova, e foi com isso que se fez este projeto. Isto começou com um grupinho pequeno português, mas desde os anos 80 cresceu muito e hoje até temos um vicariato em Angola. Muitos deles vêm para aqui estudar, portanto a gente queria uma coisa que não fosse só para os que vivem cá, mas também acolhedora para os que vêm de fora.

Estas paredes, estes muros, protegem do ruído?

Não muito porque ali passa uma estrada [sorri]. Isto resultou de um concurso, eu até gostava muito mais do projeto que ficou em segundo lugar, porque compreendeu muito bem a geografia em que íamos ficar enquadrados. Fechava mais, estava muito mais resguardado do barulho lá de baixo. Mas foi uma opção quase ideológica – a Ordem dos Pregadores está aberta ao exterior. A nossa vida é mesmo de comunhão com a sociedade, o convento não é para isolar, é para nos preparar para a intervenção.

É essa a diferença entre um convento e um mosteiro?

Mosteiro tem o sentido de ser uma realidade fechada. Chamava-se mosteiro às ordens anteriores, sobretudo aos beneditinos, como os cistercienses. Em Portugal a presença cisterciense é enorme, a partir de Alcobaça, mas em todo o país – o Minho é uma nebulosa beneditina. Já os franciscanos e os dominicanos – são os dois da mesma época, a fundação dos dominicanos é em 1216 e a dos franciscanos dois anos depois – eram ordens para viver nas cidades, que era onde havia gente. Eram as chamadas ordens mendicantes. Foram muito criticadas.

Porquê?

Por haver quem achasse que as ordens não deviam pedir, deviam viver do seu trabalho manual. Mas, nessa polémica, São Tomás de Aquino, que era um homem calmíssimo, de uma família nobre de Monte Cassino, teve uma intervenção muito importante, um bocado rude, até. Ele defende o seguinte: ‘Então há ordens militares e não pode haver ordens para estudar? Que lógica é essa?’. Foram polémicas muito acesas. São Tomás morreu muito novo, com 49 anos, mas deixou uma obra imensa. Como a letra dele era má, tinha 12 secretários, em que ele ditava três a três. Quando uns estavam cansados, vinham outros três e depois outros três.

Que trabalho foi esse que ele deixou?

Fez um trabalho enorme na recuperação para a Cristandade das obras de Aristóteles. Fez um trabalho enorme de novas interpretações da Bíblia, de comentários filosóficos. Depois, achava que os estudantes andavam baralhados com tanta questiúncula, não tinham uma orientação, então ditou a chamada Summa Theologica, uma obra imensa. Mas ao mesmo tempo era um místico. Então no final da vida disse: ‘Isto que eu escrevi parece-me tudo palha…’. A obra dele foi sempre conduzida pela chamada teologia negativa ou apofática. Negativa porquê? A cada afirmação que fazemos acerca de Deus ou dos Mistérios Cristãos devemos sempre acrescentar uma negação. ‘Deus é bom… mas não é bom como nós o imaginamos’. Para trabalhar a teologia é necessário fazer esse salto, não o fazendo está-se a entrar na idolatria, está-se a representar o irrepresentável.

Quantos irmãos vivem aqui?

Agora devem viver 25, mas depende porque estão sempre de passagem outros de outros lados, vêm estudar, vêm a congressos, há uma base e depois há variantes.

Hoje a vida de um frade ainda tem alguma coisa a ver com o que era nessa época, na Idade Média?

É a mesma coisa. Veja: nós temos um ofício de oração da manhã, chamadas as laudes…

A que horas?

Geralmente é às sete e meia. Antes do almoço ainda há a oração da hora média, a seguir ao almoço o noviciado geralmente também faz uma oração. Às sete e um quarto da tarde temos sempre vésperas e a celebração da eucaristia aberta.

E o almoço?

Normalmente é à uma e um quarto.

É que já é quase uma da tarde e ainda tenho muitas perguntas.

Faça, faça…

À refeição podem falar?

Antigamente, quando eu entrei, não. Estive primeiro em Fátima e depois em Espanha, fui para Salamanca. Em Salamanca éramos imensos e o normal era haver um leitor à refeição. Depois os estudantes até faziam pregações para se treinarem a serem capazes de captar a atenção das pessoas que estavam a comer. Mas todos estes horários também dependem dos trabalhos dos irmãos. São Domingos criou o chamado princípio da dispensa. Se um irmão tem um trabalho de preparação de uma conferência, por exemplo, está dispensado de uma parte do ofício. Outra característica da Idade Média é que vivemos do que ganhamos, do trabalho de cada um dos irmãos. Não temos património.

No caso de um professor universitário…

Entrega o salário. Se eu faço uma conferência e me dão alguma coisa – geralmente não me dão nada – vai para a bolsa comum. Numa comunidade é fundamental ter momentos de estudo em comum, a oração, o refeitório e a bolsa comum. É a isso que chama a vida comum.

Mas o frade pode ter dinheiro para os seus gastos?

Tem uma mensalidade, está codificado o que cada um precisa de dinheiro de bolso, o resto é da comunidade.

Para comprar um chocolate, por exemplo?

E não só. Livros, coisas assim. Não tem de ser uma vida de escravatura. A comunidade pode dizer ‘este irmão precisa disto ou precisa daquilo’. A única coisa que cada um pode levar de um convento para o outro são os livros, aqueles que tem mais a uso, mas periodicamente os livros vão para a biblioteca comum.

Há pouco falou no noviciado. O que são exatamente os noviços?

Os noviços são aqueles que vêm à prova ver se querem continuar a ser dominicanos ou não. Se a comunidade acha que sim, se eles acham também que sim, fica. Se não quer ou se a comunidade diz ‘não, não dás para viver em comunidade, o melhor é escolheres outra coisa’, vai à vida dele.

Quanto tempo dura essa experiência?

Há um tempo de pré-novicidado que depende de cada caso. O noviciado dura sempre um ano e tem depois um prolongamento de três anos de estudos básicos e de vida de comunidade.

É aí que fazem os votos?

Nós só fazemos voto de obediência. Hoje tem outro sentido, mas antigamente ob audire era ‘estar atento a’. Atento a Deus, atento aos irmãos. Depois está convencionado que o frade não vive em família, vive em comunidade, não constitui família fora, vive na comunidade e para a comunidade – portanto a castidade. E a pobreza: também não vive para fazer pecúlio próprio.

Também tem de haver uma recusa de toda a vaidade, não é?

Mas isso já é um problema ético. Uma pessoa vaidosa é uma pessoa estúpida.

[risos]

Se a pessoa procura a sua própria glória já está a atraiçoar a sua vocação. Se vive para se exibir… por amor de Deus, não dá!

Um frade pode vestir-se como quiser?

No convento geralmente andamos de hábito. Lá fora, o hábito já não é muito prático. É um hábito branco, suja-se muito, e portanto cada um veste como quer. Só não pode é vestir nem calçar de forma cara.

E pode usar perfume?

Só se for aquilo para a barba [after shave], perfumes não. Nem sei o sentido que isso possa ter. O banho é a coisa melhor. [sorri]

Gostava agora de recuar no tempo. Com que idade decidiu que queria entrar para os dominicanos?

Muito cedo, tinha 13 anos.

Houve algum acontecimento que o levasse a tomar essa decisão?

Houve. Eu estava numa zona em que éramos todos católicos mas era uma religião muito ameaçadora, com o inferno, com o purgatório, com isto, com aquilo. A minha avó tinha um filho, meu tio, que logo que ficou livre da tropa foi para o Brasil e lá entrou nos dominicanos. Mas esteve 23 anos sem vir a Portugal. Então pediu a um padre brasileiro que estudava em França e passava as férias em Portugal para ele vir visitar a minha avó.

Como é que esse padre brasileiro o convenceu?

O pároco pediu-lhe para ele pregar a novena de Nossa Senhora do Livramento. Ele pregou e eu fiquei abismado de alegria. Deus era outra loiça, a vida de Cristo era outra loiça, o mundo era outra loiça, era tudo novo. E, quando me fui confessar no final da pregação, ele perguntou-me: ‘O que queres ser quando fores grande?’. A minha resposta foi: ‘Queria ser como você’. E foi tão sincera na altura como é hoje. A única coisa de que não me arrependo nada é de me ter feito dominicano. Claro que depois tive uma longa preparação até entrar para o noviciado em Fátima em 1953.

Essa preparação apanhou a fase da adolescência?

Desde os 14 até aos 19 anos, porque tive de fazer os estudos básicos. 

Isso é aquela fase em que normalmente os jovens namoram, apanham bebedeiras… Nunca sentiu curiosidade por isso?

Tinha curiosidade de tudo, exatamente como todos os outros jovens. Conhecia as raparigas e os rapazes como os outros. Só que eu queria ser outra coisa. As pessoas têm as mesmas solicitações que os outros, mas segundo a orientação que vão tendo, caminham nesta ou naquela direção.

E não achava que também podia fazer uns disparates?

Não tinha muita atração por isso, tinha muita atração era por estudar. Quando era mais novo – com 14, 15, 16 anos – nas férias, mas já antes também, não tinha muito jeito para a agricultura, então andava com rebanhos no monte, que era a coisa mais bonita que pode existir. Andava a guardar ovelhas e levava um livro em latim, quando não percebia nada de latim, e lia às ovelhas. A minha aldeia está situada acima da estrada romana lá em Terras de Bouro, na serra do Gerês. Eu lia e as ovelhas ficavam encantadas, porque aquilo tem penedões enormes e há um eco.

Quando fez o voto de obediência não pensou naquilo a que estava a renunciar?

Não, porque nunca entendi o voto de obediência como uma renúncia. Entendi como uma obrigação de maior escuta do divino e de maior escuta dos outros. A ideia de obediência que ficou na sociedade, nas pessoas, e na família, é fazeres o que o outro quer.

O que o outro manda.

Eu detestava no Pai Nosso rezar ‘Seja feita a Vossa vontade’. É a vontade do pai, a vontade da mãe, a vontade dos irmãos mais velhos, a vontade da professora, a vontade do padre, ainda agora a de Deus?! Mas felizmente tive sempre uma mãe e um pai que eram muito inteligentes e que se riam muito destas interrogações quando a gente discutia as coisas da catequese em casa.

Olhamos para alguém que segue uma vida religiosa como alguém que já tem a chave da verdade e que sabe tudo.

Isso é uma desgraça.

Ainda tem dúvidas?

Muitas vezes. Até na Igreja houve coisas insuportáveis, como a Inquisição. Isso era uma das tarefas que eu encarava na vida como uma frente de combate. Sempre entendi que sacerdotes são declarados todos no batismo. A Igreja é de todos e depois há serviços na Igreja. Ser Papa é um serviço. Os cardeais devem ser um serviço, os bispos devem ser um serviço, os padres devem ser um serviço. Eu não estava para mandar em ninguém. Eu estava para ajudar a descobrir.

Estar sempre ao serviço implica uma certa anulação da personalidade ou da vontade própria?

Eu acho que é ótimo a pessoa querer ter poder. Quer dizer que não é um incapaz, está a desenvolver a sua capacidade. Mas há uma coisa que é o poder de dominar, e outra que é o poder de servir. A pessoa deve-se tornar cada vez mais competente mais capaz para servir. O vício de personalidade é entender o poder de servir como o poder de mandar, de oprimir e de explorar o outro. Uma pessoa que se prepara para professor não é para mandar nos alunos, é para os ajudar. Uma pessoa que faz investigação não é para conquistar um grande prestígio, é para prestar um serviço à comunidade. Acho que aquilo que mais perturba a personalidade de cada um é a paixão da dominação, isso é a maior perversão que há.

Os dominicanos estão muito associados à Inquisição. Ainda existe alguma estigma, alguma culpa?

Não, os dominicanos que iam para a Inquisição deixavam de ser dominicanos. Isso é contra aquilo que era a vida da Ordem, que era a busca da verdade, não a imposição da verdade.

Li recentemente um livro de um autor inglês que fez uma espécie de retiro num mosteiro beneditino e ficou muito impressionado com a quantidade de proibições e regulamentos. Os monges não podiam falar à refeição, não podiam fazer barulho, não podiam fumar no claustro… Aqui também há muitas proibições?

A partir de determinadas horas também não se pode fazer barulho. Mas isso não é da ordem das constituições, é da ordem dos chamados ‘costumeiros locais’. Antigamente até havia uma pintura muito bonita do século XIV que se punha em todos os conventos e que era isto [coloca o indicador esticado à frente da boca].

Silêncio.

‘O silêncio, o pai dos pregadores’, como se dizia. São Tomás tinha como princípio que uma sociedade que tenha muitas leis só significa que é muito imperfeita, melhor é que os membros sejam virtuosos. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, o que temos é as exigências da vida comunitária. De viver na entreajuda. A vida comunitária não é só comer juntos, rezar juntos, ter bolsa comum. É sobretudo termos o sentido uns dos outros. As pessoas têm idades diferentes, têm necessidades diferentes.

E ajudam-se?

Quem não ajuda é denunciado. Todas as segundas-feiras temos a reunião comunitária, para avaliar a semana anterior e preparar a próxima. Se as coisas estão a correr mal, diz-se. Chama-se a isso correção fraterna. 

E é comum?

É comum. São Domingos tirou-lhe o sentido de ser ou não ser pecado. Não tem uma qualificação moral, tem uma qualificação de bom funcionamento dos irmãos.

Os irmãos vivem numa espécie de bolha ou conhecem a vida lá fora?

Agora não se admite ninguém que não tenha feito o 12.º ano, mas sobretudo tem de ter trabalho ou estudos de curso universitário ou profissional. Tem de vir com pleno conhecimento da vida. Se não, não tem sentido nenhum.

Ver notícias no telejornal faz parte do dia-a-dia de um frade?

Sim, sim. Agora isso está mais diluído por causa dos telemóveis. Depois essas coisas também dependem do trabalho de cada um. Temos aqui um cantor que canta na Gulbenkian, ele tem de ter o tempo de ir aos ensaios, além do trabalho que tem como assistente hospitalar. A ordem não é para a ordem, a ordem é para a sociedade.

É hoje votada no Parlamento a Lei da Eutanásia. Acompanhou esse debate?

No começo desse debate publiquei um artigo em que disse que o necessário era estudar e investigar. Não percebo a pressa. A Assembleia tem toda a legitimidade, mas esta questão não fazia parte dos programas eleitorais. Se deixassem para uma nova legislatura parecia-me melhor, para que eles possam representar os cidadãos. Acho que há uma pressa enorme.

Precipitação?

Isso é a minha opinião, mas não sou deputado. Como cidadão acho que teria sido melhor esperar. Porque é um assunto que é necessário debater e discutir. Esta pressa não me agrada nada, porque são coisas que dizem respeito a aspetos profundos da vida. Por outro lado, acho que a vida é que deve ser assistida, até à morte. Outro dia estava com um amigo e rimo-nos muito porque ele estava com aquela ideia de ‘Eu quero ser autónomo, quero poder decidir se quero morrer’. E eu disse-lhe: Não esperes para amanhã o que podes fazer hoje!’

[risos]

Espero que daqui a uns anos estas questões se tornem inúteis, que tratem muito melhor a velhice, haja muito mais reversão das doenças. Mas vivemos é agora, e devíamos fazer as coisas com mais juízo. Obrigar um médico a renunciar ao seu código ético para entrar num código só legal? Aí há muita coisa a discutir.
Imagine que uma pessoa que está numa situação dessas de grande sofrimento e que pedia para lhe abreviarem a vida. Como tentaria convencê-la a desistir dessa ideia?
Isso hoje é conversa. Eu faria tudo por levar essa pessoa a um centro em que pudesse ter cuidados para não sofrer inutilmente. E era absolutamente incapaz de lhe dar uma coisa para ela se matar.

Tenho um amigo que diz o contrário: ‘Na infelicidade de eu ficar amarrado a uma cama sem me mexer, sem falar e sem saber onde estou, um amigo que não me der um comprimido para eu morrer não é meu amigo’.

É a interpretação dele. O problema é que, nesse caso, eu também tenho de respeitar a consciência desse amigo. O meu sofrimento pede ajuda e deve ter ajuda. Mas se para a outra pessoa é impossível contribuir para a sua morte, essa pessoa também tem de ser respeitada. O outro não me pode obrigar a violentar a minha consciência.

Admite que terminar com a vida de alguém que está em grande sofrimento pode ser um ato de compaixão?

Acho tudo o que quiserem, porque isso depende já da interpretação. Mas eu sinto-me incapaz de fazer uma coisa dessas. E sobretudo não percebo que não haja luta na sociedade para ter mais condições nos hospitais, nos lares, na medicina na própria casa, não percebo a pouca luta pela qualidade dessa assistência. Tudo isto me parecem remendos para uma injustiça social louca. Creio que estas discussões servem para distrair do essencial.

Compreendo. Mas a verdade é que é muito mais simples fazer um remendo do que corrigir essa injustiça social…

Todos os dias vivemos na compaixão uns dos outros. Essa ideia de autonomia é uma coisa que devemos perguntar, para não sermos um peso para o outro, mas a nossa autonomia deve ser relacional.

Na Irlanda, outro país de tradição católica, foi aprovada no fim de semana passado a despenalização do aborto. Acha que isto é um sintoma da decadência dos valores cristãos no Ocidente?

Dos valores humanos, também. Mas é necessário ver que aí há mundos tremendos. Agora, se falamos de uma pessoa que se encontrou no desespero [e cometeu um aborto], eu não posso aceitar a penalização. O que acho é que também há nesse domínio uma deficiência tão grande de educação, de formação, de desenvolvimento, de lucidez na vida sexual… Creio que vivemos um descuido enorme em relação à estruturação da vida e depois… Dizem que é liberdade, mas faz-me muita confusão que haja gente ainda adolescente que gasta dinheiro em bebedeiras e em drogas, e depois dá asneira. Eu não sou nada por fazer da vida um internato, mas esse descuido dá no que se viu, como os padres e os eclesiásticos que não foram educados na sua vida sexual e depois se meteram em coisas de pedofilia.

Pela amostra que temos, parece-me que a proporção de casos de pedofilia na Igreja é muito elevada.

Não acho que seja elevada, o resto é que não é investigado. O que acontece é que aqui no mundo ocidental apresentavam os padres como aqueles que eram os puros e os censores de todos, então há uma vingança social – que eu acho que é justa: ‘Queres ser um modelo e depois andas nisso?’. Mas fazer de conta que isso é uma característica eclesiástica parece-me um bocado absurdo. Embora seja preciso resolver, na Igreja Católica Ocidental, esse problema da possibilidade de haver clérigos celibatários e clérigos casados, para celebrar missa, para tudo. Enquanto não resolverem isso também há aí complicações.

A questão da castidade e da repressão da sexualidade pode levar a esses desvios?

Sim, sim. O problema do que é a vida sexual é extremamente complicado e depende da vida das pessoas, da sua evolução, das suas expressões. Mas a repressão a meu ver não é caminho nenhum, é o contrário: é um investimento na desgraça.

O Vaticano nomeou na semana passada D. António Marto como cardeal. Há já bastante tempo que não havia outro cardeal além do patriarca. 

Tradicionalmente, bem ou mal, os cardeais funcionaram como os ajudantes do governo do Papa, o colégio cardinalício. Ora, a situação que este Papa encontrou, e que levou também o anterior Papa a renunciar – o Papa Francisco chamou-lhe ‘cancros’ – foi de muitas coisas completamente desviadas da sua finalidade de ajudar no governo. E depois muitos se organizaram para se opor às suas reformas.

Havia uma fação que tinha capturado o poder?

Várias. Até começaram a dizer que o Papa era herético e tudo isso. E mesmo os primeiros cardeais que o Papa nomeou traíram a sua confiança. O que ele precisa é quem o apoie. E o Papa sabe que o bispo de Fátima sempre o apoiou. Mesmo quando o Papa veio a Fátima, ele foi ao aeroporto e disse-lhe: ‘Pode contar comigo para ajudar na Reforma’.

É um aliado?

Creio que não é o único bispo em Portugal, mas manifestou-o de uma forma muito ostensiva. O D. Clemente era mais reticente.

Mais conservador?

Isso são as classificações que se dão. Eu creio que é mais conservador, mas trata-se sobretudo disto: ver ou não ver a necessidade de uma reforma a todos os níveis da vida da Igreja.

D. Manuel Clemente fez algumas afirmações – fosse a propósito dos divorciados católicos, fosse a propósito dos homossexuais – que foram objeto de discussão. Esse tipo de intervenções incomoda-o?

O problema é que, dizem os conhecedores – eu não conheço bem, não temos muita relação -, houve uma involução no percurso dele. Porque até lhe deram o Prémio Pessoa, e no Porto teve uma intervenção pública excelente, e depois… Há coisas em que não me parece que ele esteja a trabalhar na linha do Papa.

Um dos grandes temas do seu livro A Religião dos Portugueses é Fátima, com um texto que foi escrito na década de 80. Mudou de opinião sobre Fátima nestes trinta anos?

Vivi em Fátima durante bastante tempo e conheci bem as diferentes épocas. Ainda no outro dia estivemos aqui a fazer um debate sobre igrejas sem paredes – acho que Fátima é a grande igreja sem paredes. Aquele mundo em que cada um não tem de confessar a ninguém ao que vai, não tem dogma nenhum a admitir, porque mesmo as narrativas dos Pastorinhos interessam pouco aos peregrinos. Cada um vai com o seu problema e a sua esperança. E Fátima, no meio daquilo tudo, no meio de muitas aberrações que se pode encontrar, tem uma afirmação básica que é a única coisa a que as pessoas ligam: ‘o meu coração vencerá’. Ali há uma luz – veja que a grande procissão ali é a das velas – e ao mesmo tempo é um cais. Os portugueses estiveram na guerra – antes de ir foram rezar, quando vieram foram agradecer não ter morrido. Uma vez encontrei um homem todo a arrojar-se no chão e perguntei-lhe: ‘Porque é que faz isso? Você não precisa de nada disso’. E ele diz-me: ‘Isto é uma brincadeira em comparação com o que eu vivi em Angola’. Fátima transformou-se num lugar em Portugal – e internacional, mesmo para outras religiões – onde as pessoas se sentem bem, onde se sentem transformadas. Não há milagres de Fátima. O grande milagre de Fátima é a transfiguração da vida de cada um.

Ao mesmo tempo tem um olhar crítico sobre o que se passa à volta. Fala no «reino do mau gosto», por exemplo…

O grande trabalho deste Papa – mas ninguém ligou – foi as homilias que ele fez a dizer que era necessário refazer aquilo tudo. Há coisas absurdas, como aquela de a Lúcia perguntar a Nossa Senhora onde estava uma fulana e ela responder: ‘Está no Purgatório até ao fim do mundo’. É uma falta de juízo até ao fim do mundo!
Quando fala de mau gosto fala também daquelas imagens de Nossa Senhora? Algumas até brilham no escuro!
Sim, sim, se for àquelas lojas estão todas pejadas de mau gosto. Agora já começa a haver outras coisas, fizeram uma basílica nova que é interessante, o espaço grande é uma maravilha, tem uma imagem de Nossa Senhora muito bonita, tem uma coisa um bocado oriental engraçada, e a cruz cá fora é lindíssima. Mas é um processo, até de transformação estética.

Quando o Papa esteve em Fátima para celebrar o centenário, no ano passado, houve pessoas que aproveitaram para cobrar centenas de euros por uma dormida. Acha que é pecado cobrar 600 ou mil euros por uma dormida?

É evidente. É uma desonestidade enorme. Mas é um problema de ética humana. Devia haver maior denúncia disso.

Além do fenómeno religioso, Fátima também é um negócio?

Enorme. É evidente que Fátima é um comércio. Já viu o conjunto de hotéis, de tudo o que se desenvolveu e os preços que fazem? Quando eu ia lá ficava ao relento durante a noite, as pessoas agora querem ficar no hotel. Mas isso são coisas laterais. O essencial de Fátima são os peregrinos. Sob o ponto de vista religioso as pessoas vão procurar em Fátima o que não têm nas paróquias, o que não têm nos outros santuários, o que não têm noutro lado nenhum. Cada pessoa vai com o seu problema, com a sua angústia, com a sua esperança, com a sua gratidão.

Existe um debate no seio da Igreja entre quem acredita e quem não 

Nunca foi tido como obrigatório acreditar em Fátima. Não há obrigação nenhuma. Uns acreditam, outros não acreditam; uns acreditam de uma maneira, outros acreditam de outra. Pelo contrário: Fátima, ao nível de crença, é um lugar de liberdade. Cada um tem a sua, não tem de dar contas a padres nem a bispos nem a ninguém. Vai por sua conta.

Sei que gosta de ler. Lê também romances?

A literatura é absolutamente fundamental para a expressão da fé. Mesmo as coisas mais anticlericais.

Tem autores favoritos?

Em Portugal tenho um autor muito favorito: Agustina Bessa Luís. Na poesia é o Eugénio de Andrade e a Sophia de Melo Breyner, que era uma grande amiga minha, e depois o António Lobo Antunes. Sigo muito a sua obra e dou-me muito bem com ele, mas não é por causa disso, é pela qualidade literária. Também era amigo do Saramago, debati com ele muito o livro sobre o Evangelho Segundo Jesus Cristo, fomos sempre muito amigos, mas eu acho que ele era demasiado pregador, a sua arte de escrever era muito declarativa. 

E não o tentou converter?

Eu nunca tento converter ninguém. Faço sempre a minha proposta e cada um segue o seu caminho, porque acredito que Deus está no coração de todas as pessoas. Uns afirmam de uma maneira, outros afirmam de outra… Eu tenho de partilhar a revelação do Evangelho, que cada vez me comove mais, me espanta mais. Os textos do Novo Testamento e as narrativas dos quatro evangelhos são muito diferentes umas das outras, cheias de contradições, mas isso não interessa nada, porque aquilo que indicam é um horizonte de vida e uma iluminação que não se encontra em mais lado nenhum.

Leu esta tradução da Bíblia do Frederico Lourenço?

Sim, sim, sou amigo dele e já conversámos sobre isso. É um trabalho espantoso. Vamos ver se vai continuar a ter fôlego para levar aquilo até ao fim, porque é um trabalhão enorme.

Imagino que já tenha lido aquele bestseller do século XV de Thomas A. Kempis, A Imitação de Cristo…

Sim, é um livro que tem ajudado imensa gente. Mas eu nunca gostei muito. Fiz até um curso de um ano inteiro sobre a Devotio Moderna. Eu não sou daquela linha. Sou muito mais do Mestre Eckhart [dominicano alemão do século XIV], esse é que é um místico impressionante.

Mas acha que é esse o propósito da vida de um cristão, imitar a vida de Cristo?

Cuidado, o imitar dá muito a ideia do exterior. O espírito do Evangelho é que deve informar o nosso espírito. Veja que a Igreja é criativa, mesmo o Evangelho suscita interpretações que nunca mais acabam. Estamos a dois mil anos de distância [do nascimento de Cristo], mas aquilo por que lutou continua a ser aquilo por que vale a pena hoje lutar, não tenho dúvidas acerca disso.

Só para terminar. Bento Domingues é mesmo o seu nome de batismo?

Não. O meu nome de batismo é Basílio de Jesus Gonçalves Domingues. Quando me fiz dominicano – hoje isso já não acontece – davam-nos outro nome. E a mim deram-me este. Hoje já não me entendo assim muito com o meu nome, até para os documentos e tudo…

Como é que assina?

Assino Frei Bento Domingues. Sempre.

No bilhete de identidade que nome tem?

Basílio.

E há alguém que o trate por Basílio?

Não, não. Nem sequer na família.