O Vaticano nomeou na semana passada D. António Marto como cardeal. Há já bastante tempo que não havia outro cardeal além do patriarca.
Tradicionalmente, bem ou mal, os cardeais funcionaram como os ajudantes do governo do Papa, o colégio cardinalício. Ora, a situação que este Papa encontrou, e que levou também o anterior Papa a renunciar - o Papa Francisco chamou-lhe ‘cancros’ - foi de muitas coisas completamente desviadas da sua finalidade de ajudar no governo. E depois muitos se organizaram para se opor às suas reformas.
Havia uma fação que tinha capturado o poder?
Várias. Até começaram a dizer que o Papa era herético e tudo isso. E mesmo os primeiros cardeais que o Papa nomeou traíram a sua confiança. O que ele precisa é quem o apoie. E o Papa sabe que o bispo de Fátima sempre o apoiou. Mesmo quando o Papa veio a Fátima, ele foi ao aeroporto e disse-lhe: ‘Pode contar comigo para ajudar na Reforma’.
É um aliado?
Creio que não é o único bispo em Portugal, mas manifestou-o de uma forma muito ostensiva. O D. Clemente era mais reticente.
Mais conservador?
Isso são as classificações que se dão. Eu creio que é mais conservador, mas trata-se sobretudo disto: ver ou não ver a necessidade de uma reforma a todos os níveis da vida da Igreja.
D. Manuel Clemente fez algumas afirmações - fosse a propósito dos divorciados católicos, fosse a propósito dos homossexuais - que foram objeto de discussão. Esse tipo de intervenções incomoda-o?
O problema é que, dizem os conhecedores - eu não conheço bem, não temos muita relação -, houve uma involução no percurso dele. Porque até lhe deram o Prémio Pessoa, e no Porto teve uma intervenção pública excelente, e depois… Há coisas em que não me parece que ele esteja a trabalhar na linha do Papa.
Um dos grandes temas do seu livro A Religião dos Portugueses é Fátima, com um texto que foi escrito na década de 80. Mudou de opinião sobre Fátima nestes trinta anos?
Vivi em Fátima durante bastante tempo e conheci bem as diferentes épocas. Ainda no outro dia estivemos aqui a fazer um debate sobre igrejas sem paredes - acho que Fátima é a grande igreja sem paredes. Aquele mundo em que cada um não tem de confessar a ninguém ao que vai, não tem dogma nenhum a admitir, porque mesmo as narrativas dos Pastorinhos interessam pouco aos peregrinos. Cada um vai com o seu problema e a sua esperança. E Fátima, no meio daquilo tudo, no meio de muitas aberrações que se pode encontrar, tem uma afirmação básica que é a única coisa a que as pessoas ligam: ‘o meu coração vencerá’. Ali há uma luz - veja que a grande procissão ali é a das velas - e ao mesmo tempo é um cais. Os portugueses estiveram na guerra - antes de ir foram rezar, quando vieram foram agradecer não ter morrido. Uma vez encontrei um homem todo a arrojar-se no chão e perguntei-lhe: ‘Porque é que faz isso? Você não precisa de nada disso’. E ele diz-me: ‘Isto é uma brincadeira em comparação com o que eu vivi em Angola’. Fátima transformou-se num lugar em Portugal - e internacional, mesmo para outras religiões - onde as pessoas se sentem bem, onde se sentem transformadas. Não há milagres de Fátima. O grande milagre de Fátima é a transfiguração da vida de cada um.
Ao mesmo tempo tem um olhar crítico sobre o que se passa à volta. Fala no «reino do mau gosto», por exemplo…
O grande trabalho deste Papa - mas ninguém ligou - foi as homilias que ele fez a dizer que era necessário refazer aquilo tudo. Há coisas absurdas, como aquela de a Lúcia perguntar a Nossa Senhora onde estava uma fulana e ela responder: ‘Está no Purgatório até ao fim do mundo’. É uma falta de juízo até ao fim do mundo!
Quando fala de mau gosto fala também daquelas imagens de Nossa Senhora? Algumas até brilham no escuro!
Sim, sim, se for àquelas lojas estão todas pejadas de mau gosto. Agora já começa a haver outras coisas, fizeram uma basílica nova que é interessante, o espaço grande é uma maravilha, tem uma imagem de Nossa Senhora muito bonita, tem uma coisa um bocado oriental engraçada, e a cruz cá fora é lindíssima. Mas é um processo, até de transformação estética.
Quando o Papa esteve em Fátima para celebrar o centenário, no ano passado, houve pessoas que aproveitaram para cobrar centenas de euros por uma dormida. Acha que é pecado cobrar 600 ou mil euros por uma dormida?
É evidente. É uma desonestidade enorme. Mas é um problema de ética humana. Devia haver maior denúncia disso.
Além do fenómeno religioso, Fátima também é um negócio?
Enorme. É evidente que Fátima é um comércio. Já viu o conjunto de hotéis, de tudo o que se desenvolveu e os preços que fazem? Quando eu ia lá ficava ao relento durante a noite, as pessoas agora querem ficar no hotel. Mas isso são coisas laterais. O essencial de Fátima são os peregrinos. Sob o ponto de vista religioso as pessoas vão procurar em Fátima o que não têm nas paróquias, o que não têm nos outros santuários, o que não têm noutro lado nenhum. Cada pessoa vai com o seu problema, com a sua angústia, com a sua esperança, com a sua gratidão.