A capa do seu mais recente livro, Ao Encontro da História – O Culto do Património Cultural (ed. Gradiva) mostra uma imagem da biblioteca de Mafra. «O convento de Mafra, que muitos referiram que é uma obra absolutamente gigantesca de um rei magnânimo, tem verdadeiras preciosidades», explica-nos Guilherme d’Oliveira Martins. «Nomeadamente a biblioteca, cujo acervo contém livros que não há em mais parte nenhuma, nomeadamente muitos livros proibidos».
No seu gabinete da Fundação Calouste Gulbenkian, com vista para o jardim, conversamos sobre o seu livro, o Ano Europeu do Património, de que é coordenador nacional, educação, viagens, língua e tradições.
Em que consiste este Ano Europeu do Património Cultural, que está a coordenar?
Isto tem uma história. A proposta do Ano Europeu do Património Cultural veio da Europa Nostra, que é presidida pelo maestro Plácido Domingo e em que eu tenho participado há bastante tempo. E em boa hora a Comissão Europeia decidiu que o único ano temático deste ciclo fosse sobre o património cultural. O que estamos a dizer é que nós, europeus, só seremos dignos das responsabilidades que nos são postas se arregaçarmos as mangas, se cooperarmos melhor, se conhecermos melhor. A noção do património cultural é uma noção dinâmica, e obriga-nos a associar pelo menos quatro realidades: o património construído, o património imaterial (e aqui temos as tradições, as línguas, tudo aquilo que são práticas quotidianas), em terceiro lugar a paisagem e em quarto lugar – e isso é completamente novo – a integração da criação contemporânea na noção de património.
Não deveria ser o tempo a dizer-nos que parte do que fazemos hoje deveria ser legada e que parte devia cair no esquecimento?
Esse é o julgamento definitivo. Mas esta noção de integrar a criação contemporânea, embora seja algo completamente novo, é natural, até para que haja uma ligação estreita entre o que recebemos e aquilo que legamos. Costumo dar o exemplo das catedrais medievais, que não têm um autor só.
Foram construídas ao longo de várias gerações…
Precisamente. O conjunto harmonioso que nós recebemos resulta de contributos das várias gerações. Há um caso muito interessante, quase caricato, que é a catedral de Salamanca, onde há um pequeno apontamento que apresenta um astronauta. Essa ideia é para dar nota de que o monumento histórico está em atualização permanente. Tem a ver connosco e não apenas com o passado longínquo.
O que espera que esteja mudado ou melhorado quando o ano terminar?
O Eurobarómetro sobre a relação dos portugueses com o património dá-nos elementos contraditórios. Por um lado os portugueses têm uma consciência grande da importância do património. Aí somos dos primeiros, se não o primeiro. No entanto, quando se trata de visitar os museus ou de tomar iniciativas para preservar e salvaguardar o património, somos os últimos. Temos de inverter esta tendência, ou seja, é indispensável que os portugueses passem a ter uma relação coerente que envolva a participação, a visita e o contributo para a salvaguarda desse património.
Como se consegue isso?
Em primeiro lugar temos estudos relativos aos domínios técnicos. Felizmente em Portugal já temos experiências técnicas de conservação e restauro extremamente avançadas, ao nível do melhor que se faz no mundo. Em segundo lugar, temos de cuidar mais do ensino da História e da Geografia. Se me perguntar qual é o domínio desta área que não pode deixar de ser incentivado é a educação e a formação. Precisamos de melhor qualidade na educação e na ciência. E depois a sensibilização, por isso temos um projeto para que os nossos professores de História e os nossos bibliotecários encontrem uma oportunidade para que as escolas adotem monumentos, ou estejam mais atentas a uma certa tradição. Podemos falar do mosteiro de Alcobaça ou do convento de Mafra, mas também da dieta mediterrânica, em Tavira, ou o fado aqui em Lisboa. Nunca esqueço que uma vez na ilha de Java encontrei jovens que me disseram: ‘Estamos a aprender o português moderno porque gostamos de fado’. E no Japão exatamente o mesmo: jovens de vinte e poucos anos a aprender a língua portuguesa porque o fado tinha sido declarado património imaterial da humanidade.
Quem dizia isso eram jovens normais? Hoje olhamos para os jovens e eles costumam estar-se nas tintas para o estudo do passado…
Posso garantir que eram jovens normais. É evidente que eu os visitei porque eram de uma comunidade que veio de Malaca e que falava originariamente português.
Isso vem ao encontro da minha questão seguinte. Como podemos fazer com que as gerações mais jovens se interessem pelo património, pela leitura, pelos museus, por coisas que exigem tempo e investimento, nesta época em que é tudo muito imediato e em que estão sempre a aparecer novidades?
Só pelo exemplo, pela qualidade pedagógica dos professores, dos educadores, das famílias. Quando conseguimos incutir no jovem o interesse pelo património ele vai para casa e vai de algum modo partilhar – se foi motivado para isto – com a sua família, com os seus pais, com os seus avós, e vai descobrir coisas extraordinárias. Ao apreciar uma receita da sua avó, ele está a defender o património. Ainda há dias celebrámos a Quinta-feira da Espiga. As pessoas já esqueceram a tradição de ir aos campos e colher espigas e papoilas, que representavam aquilo que era desejado para o ano: ter saúde, ter boas colheitas, ter uma boa relação com a natureza e com as outras pessoas. Na maior parte das nossas terras as pessoas subiam a um monte. A Quinta-feira da Espiga era a Quinta-feira da Ascensão. Havia uma ideia de elevação, de, em conjunto, em relação com a natureza, aspirarmos a ser melhores. Não esqueço o ensinamento do professor António José Saraiva, que foi proprietário e grande impulsionador de uma revista chamada Raiz e Utopia. Estes dois elementos são cruciais: a compreensão das raízes, daquilo que recebemos, ou seja, a História...