Janita Salomé. “Eu e o Vitorino nunca quisemos ser o Lelo e seu irmão Paralelo!”

Uma fila de turistas decididos estende-se do Elevador da Bica Duarte Belo até à rua de São Paulo. São uma barreira intransponível para qualquer tentativa de fotografar Janita Salomé que aqui se fotografa também a si próprio por palavras e histórias, sempre com a voz pausada e cantada que vem lá do fundo da alma…

Uma fila de turistas decididos estende-se do Elevador da Bica Duarte Belo até à rua de São Paulo. São uma barreira intransponível para qualquer tentativa de fotografar Janita Salomé que aqui se fotografa também a si próprio por palavras e histórias, sempre com a voz pausada e cantada que vem lá do fundo da alma alentejana. Subimos pela travessa da Bica Pequena: o lugar diz-lhe muito. É a sua primeira Lisboa. Pois, uma Lisboa que já não há…

A que há reencontra-o no dia 5 de junho, no Teatro da Trindade.

Os setenta anos estão na moda?

Ora. Artista não tem idade. Mesmo com setenta anos como eu… Olha, saiu-me. Já disse que tenho setenta, dei idade a mim mesmo.

Mas sentes que há espaço para vocês, da tua geração? Ou pelo menos mais espaço?

Bem, esperemos. Creio que não me vou calar tão cedo.

Houve tempos em que vos marginalizaram um pouco…

A malta da minha idade, como o Tordo, o Carlos Mendes, o Paulo de Carvalho ou o meu irmão Vitorino sempre foi mais mediática. Eu nunca fui muito.

Porquê?

Porque me agarrei sempre muito ao que queria fazer e fugi, de certo modo, aos padrões estéticos vigentes. Sofri as consequências dessas opções. Paguei, se calhar, o preço de não chegar tão facilmente ao público. Mas nunca me faltou a disponibilidade para pagar esse preço. Agora, sinceramente, não sei como se alarga o público nesta fase. Nem me preocupa muito… Aliás, nunca me preocupou. Este caminho que eu trilho dá-me muito prazer e dá-me luta.

Também tens o teu grupo de indefetíveis… Gente que trilha esse caminho contigo.

Sim. Há um público que segue este caminho. E também músicos, porque é preciso escolher os músicos certos, pessoas com as quais tenho muita amizade e afinidade, como é o caso do Mário Delgado, que trabalha comigo há muitos anos. Há uns trinta anos, sei lá. E o Filipe Raposo, há menos tempo, porque também é mais novo. E outros: o Ruben Alves, excelente pianista, o Tiné, o Carlos Miguel, o Miguel Amado e, agora, um rapazito novo que entrou e começou a tratar-me por você. Eu disse: ó pá, trata-me por tu, parece que estás a falar com o teu pai. É o João Firmino, toca muito bem guitarra, foi aluno do Mário Delgado. Como vês, estou muito bem acompanhado e se não fosse o talento e a capacidade criativa destes músicos, o resultado final não seria certamente o mesmo.

Então não te sentes só.

De modo nenhum! Nunca me senti só!

Por que é que escolheste virmos conversar para aqui, para a Bica?

A Bica significa muito para mim. Durante anos frequentei este bairro. Trabalhava numa vara do juízo cível que ficava na rua de São Paulo. Tinha dezanove anos e acabara de chegar a Lisboa.

Vindo do Redondo?

Do Redondo. 11.º juízo cível. Naquele edifício que depois foi a conservatória do registo automóvel. Claro que está muito diferente, este espaço. Agora é um local para turistas, no meu tempo só cá estavam as pessoas daqui. Vinha almoçar ao restaurante da Dona Amélia. Era uma espécie de mãe. Uma segunda mãe. Tudo isto me diz muito e toca-me fundo. Não em termos nostálgicos, nada disso…

Não és nostálgico?

Não sou. Se fosse era porque tinha falhado alguma coisa na minha vida. A vida somos nós, por inteiro. Agora até me fez lembrar o Sartre. Então a vida é que fez as coisas por ti ou tu é que fizeste a tua vida? A nostalgia em mim não cabe porque aprendi a viver com a idade que tenho. Foi bom ter vivido – até já parece um fado…

E continua a ser bom?

Sem dúvida! Claro que sim!

Fala-me então desse tempo em que saíste do Redondo para a cidade. Vindo de uma família grande…

Enorme! Todos ligados à música. O meu pai como grande motivador disso.

Era músico?

Era. Um cantador exímio de fados de Coimbra. Tocava bandolim numa tuna que ao tempo existia no Redondo e também arranhava violino, ou melhor, serrava no violino. 

Mas não era de profissão…

Não. Era relojoeiro. Tínhamos uma sobreloja e foi aí que o meu pai nos proporcionou o acesso a todos os instrumentos. Enfim, não todos, mas muitos.

Vocês eram quantos?

Cinco.

Todos com queda para a música?

Todos! Os dois mais velhos foram aprender na banda filarmónica, instrumentos de sopro. Houve um deles que ainda aprendeu com uma freira de um convento que havia no largo em que nós nascemos. A freira dava aulas de piano e um dos meus irmãos aprendeu com ela. Era uma figura, essa freira. Recordo-me dela muitíssimo bem. Também passei pela banda filarmónica, mas quando descobri que cantava, optei por esse caminho.

Cantar, no Alentejo, é um complemento da vida. Enquanto nós, por aqui, bebemos só uns copos, vocês bebem uns copos e cantam a seguir.

É isso mesmo. Mas cantávamos muito fado de Coimbra, muito!

Essa agora. E porquê?

Por causa de gente que fora estudar para Coimbra. E porque ouvíamos muito na rádio. A minha mãe ouvia um fado e fixava-o de imediato. Era impressionante. Mas o fado de Coimbra não se cantava apenas no Redondo. Cantava-se também no Alandroal, em Reguengos…

Também cantaste o fado de Coimbra?

Sim. Repara que era o que se ouvia na rádio. Fados, de Coimbra ou de Lisboa, e música clássica. Isto nos anos 20. Quando eu era miúdo havia o hábito das serenatas. A nossa geração foi influenciada por isso. O Vitorino também canta muito bem o fado de Coimbra. E, ainda hoje, se formos a Coimbra temos de ir à capela.

Também cantavas aos balcões?

Como? Ah! Aos balcões… Não. Cantava era para ver se chegava a algum balcão. Ah! Ah! Depois, nos conjuntos de baile. E, quando tinha os meus sete anos, os irmãos da minha mãe e os meus irmãos mais velhos tocavam numa orquestra.

No coreto?

Não. Num palanque. De madeira. Mas com piano, contrabaixo, bateria, trombone, trompete, rabecão, três saxofones. 

Já era coisa complexa…

Sim. E com orquestrações que vinham de Badajoz. Ediciones Combo, ainda me lembro.

Não havia aí nada de espontâneo.

Nada! Era tudo preparado e ensaiado. Eu ficava embevecido a ver o meu tio dirigir aquilo, o cuidado que tinha com esta ou aquela nota, a chamar a atenção deste ou daquele. O repertório era constituído por paso dobles, rumbas, boleros. Depois, com os meus irmãos mais novos, começaram a entrar umas músicas italianas. Comigo já entrava a música cantada em inglês.

Também atravessaste uma fase Beatle?

Sim, sim. Aí pelos dezasseis anos. Não era normal que os conjuntos de baile cantassem em inglês.

Para já não era fácil o acesso às letras…

Isso. Cantava-se muito em português. Quando passei a escolher o repertório, arranjámos umas partituras que vinham de uma loja da Calçada do Lavra, Godofredo Duarte. Mas já no tempo em que vim viver para Lisboa.

Que diabo faz um músico num tribunal cível?

Olha. Os possíveis… Éramos cinco irmãos e não podíamos ser todos relojoeiros. Os dois mais velhos ficaram na loja, eu e o Vitorino fomos estudar. Ele ainda seguiu Belas Artes. O mais novo também conseguiu viver da música…

E tu? Quando conseguiste passar a viver da música?

Foi depois da guerra. Tirei uma licença ilimitada do funcionarismo público. Regressei de África casado por procuração. Chegaram as filhas, o casamento falhou, embora resolvido pacificamente e eu comecei a trabalhar com o Zeca Afonso, no grupo que o acompanhava, juntamente com o Júlio Pereira e o Serginho Mestre, que já foi com uma violinha às costas e umas asinhas…

Encantou-se, como dizia o Guimarães Rosa.

Tocava percussões. E havia ainda o Diego Inês. Que nunca mais vi. Não sei o que é feito dele. Nesse tempo já conseguia sobreviver com o dinheiro da música. E com o fim da carreira do Zeca, lancei-me por conta própria. A partir daí, foi sendo melhor ou pior. Nunca na crista da onda – mas de qualquer forma dá para viver.

Ora, tens nome. Isso vale. Já não direi para os mais novos…

Mas é normal. São os tempos. Criam-se preconceitos. Aliás, deixa-me dizer-te que por vezes ficamos surpreendidos. Muitos miúdos vêm ter comigo no final dos concertos e confessam: eu não conhecia a sua música, mas gosto imenso; nunca ouvimos isto na rádio. É assim. Dantes este género de música era mais ouvido, mas não o abandonei. Agora não rejeito a introdução de outros instrumentos. Eletrónicos, por exemplo. Não cultivo o conservadorismo de instrumentos acústicos. Não estou envolto num casulo. Nunca estive.

Gostas de absorver?

Gosto de encontrar elementos que possa fundir com o estilo de música que trazia comigo desde o início. É o que tenho feito. A minha música, hoje, pode considerar-se urbana. Este último disco é a prova disso.

Fizeste a guerra onde?

Em Moçambique. Era atirador e estive semi-amnésico. Perdi uma parte grande da memória. Foi muito duro e traumatizante. Só que na guerra também se aprendem muitas coisas. Se é possível tirar de uma guerra algo de positivo, eu tirei. Aprendi como reagimos quando temos a vida em risco. Aprendi muito sobre solidariedade. A importância que a música ganha nessas situações.

Que música ouvias no mato?

Curiosamente, na então Rádio Clube de Lourenço Marques, ouvia-se o Adriano Correia de Oliveira. A primeira vez que ouvi a Canção Tão Simples, com música do José Niza e letra do Manuel Alegre, cantada pelo Adriano, foi em Moçambique.

Em que ano?

70… 71. Estava no mato e brotaram-me lágrimas dos olhos. Quando comecei a ouvir. «Quem poderá domar os cavalos do vento/Quem poderá domar este tropel/Do pensamento/à flor da pele?»… Tinha de ouvir aquilo muito baixinho, por motivos óbvios, e de repente ouço a voz do Adriano Correia de Oliveira, coisa que por cá era impossível. Foi uma surpresa.

Chamaste-te a ti próprio Andarilho? Por onde andou o Andarilho?

No exercício de cantar, já foi à China, à Índia, ao Brasil, a África. Tantos lugares da Europa…

E sempre bem recebido?

Sempre! E isso tem muito que ver com a educação musical das pessoas que vão aos meus concertos. Escolho muitas vezes poemas muito improváveis de serem musicados. Mas é aí que me sinto bem. É aí que me desafio. Porque essas palavras não estruturadas para serem musicadas oferecem-me problemas tremendos. Por outro lado, as melodias também são menos fáceis de ouvir. A palavra exige! E eu vou atrás da palavra.

Por isso a Valsa dos Poetas?

Sim. Também… Melhor: também, não; essencialmente por isso. É o relevo dado à palavra. E à importância dos poetas.

Valsa porquê?

Valsa como podia ser mazurca. Tem que ver com a musicalidade dos poemas.

Métrica?

Métrica, claro! Tudo isso para mim é uma construção, um movimento…

Um bailado?

Uma valsa. Imagino tudo isto no ar, palavras e música, tudo esvoaça e se entrelaça…

Tens uma ideia plástica da tua música?

Nunca pensei nisso. É possível… Incutiram-me a ideia de que não é fácil ouvir a minha música. Refletindo sobre esse ferrete que me foi posto, não sinto que isso seja verdade: ouço músicas bem mais complicadas do que as minhas e não aceito o carimbo.

Questão política, também?

Será. Uma boa pergunta que faço a mim próprio. Hoje em dia não faz sentido nenhum.

Ou não devia fazer…

Não devia fazer! Mas será que sim? Muitas vezes é por capricho pessoal de quem decide: «não gosto deste gajo!» Já me disseram isso. Não gosto deste gajo, não passo a música dele.

És demasiado franco?

Pois… Eu abro muito o bico. Não me calo, respingo, e isso paga-se. Mas eu prefiro pagar esse preço do que ficar com um nó na garganta.

Por que achas que isso não aconteceu com o teu irmão Vitorino, por exemplo?

O Vitorino tem outras perspetivas. Procurei sempre diferenciar-me dele. Fazer coisas diferentes das dele. E ele foi um dos grandes incentivadores da minha carreira a solo. Tanto ele como o Zeca. Mas o Vitorino já tinha um espaço ocupado. Tive de subir mais não sei quantos degraus para encontrar o meu. Fizeste-me pensar numa coisa na qual nunca tinha pensado. Porquê esta diferença? O Vitorino é autor de algumas das mais belas canções feitas neste país. E também não acho que o facto de fazer uma música menos fácil de ouvir, essa música seja melhor. Chegar à simplicidade e ao bom gosto sem passar pelo simplismo é uma arte. E a música dá-nos esse privilégio. E o de optarmos por um caminho ou por outro. Eu, para me distanciar dele, para não sermos o Lelo e o seu irmão Paralelo, talvez tenha entrado numa espécie de música mais complicada. Pode bem ser. Lá está: não tinha pensado nisso.

Mas as diferenças também se fazem pela personalidade de cada um de vocês. Ele é mais expansivo do que tu.

De facto é. Ele é tímido como eu, mas foge para a frente. Coisa que eu não faço. O tempo também vai apagando esses constrangimentos. Mas reconheço que fiquei marcado por essa imagem.

Também tens sido tímido na tua música?

Pelo contrário! Aí tenho tentado ser ousado. Basta ouvir. Mas, claro, a ousadia também se paga. Talvez por vezes não tenha sido feliz, mas nesse caso peço desculpa à música. E às pessoas que me ouvem. E até a mim próprio. Mas vou sempre procurar fazer algo que não tenha feito até aqui.

Há algo que não sai de ti: o Alentejo.

Não sai. Mas neste último trabalho entra mais num contexto mediterrânico. E a minha faceta urbana não é tão alentejana quanto isso.

Escolhe-me aí um momento fundamental da tua carreira.

Olha, o primeiro disco que gravei e que o Zeca ainda ouviu. Cantar ao Sol. Ele já estava muito doente. E esse trabalho marcou-me muito e marcou a minha carreira. Porque tinha sido o resultado de várias viagens a Marrocos e porque vivia um período muito agitado e muito interessante da minha vida.

Tinhas uma ligação muito forte com o Zeca?

Tinha. Mas não era difícil criar-se uma relação forte com o Zeca. Ainda por cima, o período em que estive mais próximo dele foi o período em que surgiram os primeiros sintomas da doença que o matou. Uma doença muito pouco conhecida, tal como continua a ser. Ele sofria de espasmos, tinha assomos de pânico, não conseguia respirar. O Serginho e o Júlio Pereira piravam-se logo. Quem ficava aflito com o Zeca era eu. Ele deitava-se no chão e pedia: «carrega-me aqui no peito; carrega-me aqui na barriga». E eu fazia um esforço para o ajudar no que podia. Isso ligou-me ainda mais a ele. Para além da enorme admiração que tinha por ele enquanto pessoa, enquanto exemplo cívico, enquanto homem de coragem. Aparentemente tímido, mas de uma lucidez espantosa. Uma capacidade artística incomparável. Era um grande poeta, um orador espantoso. Ficávamos embevecidos a ouvi-lo falar, contar histórias…

O lugar dele não se preenche.

Não! Insubstituível! 

Não encontraste ninguém que chegasse lá perto?

Não. Basicamente fomos todos discípulos do Zeca. O Fausto, o Zé Mário Branco… com tudo o que admiro neles… mas o Zeca era de outra dimensão.

Agora, para este trabalho, foste buscar alguns poetas já não muito lidos.

Sim. Há um que recomeçou a ser lido que é o Carlos Mota de Oliveira. Felizmente. Mas outros, como o Bocage, por exemplo. O Bocage tem uma linguagem densa nos seus sonetos.

E criou uma imagem errada disso.

Absolutamente. Estamos a falar de um homem que sofreu agruras, que foi alvo de muitas invejas. O nome arcádico dele era Elmano Sadino e havia um tal de Belmiro Transtagano, alentejano, o Curvo Semedo, que o odiava. Odiava-o porque não tinha a qualidade do Bocage. E fê-lo ser expulso da Arcádia, algo que o magoou imenso. Era um homem vivido, frequentador de tertúlias, como a do Nicola, muitas vezes convidado pela Marquesa de Alorna. E tinha depois as suas compensações divertidas, como a da noite em que sai do Café Nicola e uma daquelas patrulhas do Pina Manique o aborda: «Eu sou Bocage, venho do Nicola. Vou para o outro mundo se disparares a pistola». Agora os sonetos dele são extraordinários. Aprende-se português a lê-los. Consta que os fazia de improviso. E, apesar disso, tinham uma riqueza profundíssima.

Lês um poema e a música surge-te?

Às vezes leio um poema e penso que ele tem tudo para ser musicado. Outras vezes vou à procura. E tenho os meus poetas, aos quais peço poesias, como é o caso do José Jorge Letria, do Carlos Mota de Oliveira, a Élia Correia, o Jaime Rocha. Poetas e amigos. Se assim não for, não se cria cumplicidade. A música também precisa desta ligação afetiva.

Também gostas de escrever?

Menos. Sou preguiçoso. Gosto mais de ler. Até podia ser que fizesse qualquer coisa de jeitoso mas nasce-se poeta. E eu não nasci poeta. Faço uns versos, de vez em quando, mas não mais.

A amizade é algo de fundamental na tua vida.

Fundamental! É um bem imprescindível que eu cultivo muito. Não concebo a minha vida sem a troca de afetos.

Já te aconteceu perder amigos?

Quase… Houve uma altura propícia para ter perdido alguns: a seguir ao 25 de Abril. Mas nem eles permitiram isso, nem eu. As diferenças ideológicas podiam ter-nos afastado, mas isso não sucedeu.

O 25 de Abril mudou muito a tua vida?

Mudou. Mudou muito a minha vida até na intimidade. Agora ia entrar por esse caminho…

Devia ser minha obrigação ir por aí, mas não é preciso.

Até a esse nível as coisas passaram a ser diferentes. mas o sonho de me dedicar à música ganhou velocidade após o 25 de Abril. Os horizontes abriram-se. A curiosidade também. Sabes que eu tinha uma memória muito forte do que se passara em Espanha na guerra civil porque a família da minha mãe era do Alandroal e viveram esses anos de forma intensa. O meu tio mais novo, que era do Partido, contava-me sobre as prisões dos republicanos e de como iam ao outro lado da fronteira levar-lhes pão com manteiga à cadeia. E tenho este lado de saber que na minha terra houve gente que era convidada a ir a Badajoz assistir aos fuzilamentos na praça de touros. Um deles até foi meu professor na escola primária. Senti desde criança essa opressão que existia.

Daí a tua timidez?

Daí eu sentir que o 25 de Abril mudou muito do meu comportamento mas sentir que ainda muitos dos constrangimentos que tenho, ou falta de capacidade de reação imediata a certas situações ainda vem do tempo anterior. Às vezes pergunto-me: «por que é que me deixei ficar? por que é que não respondi?» A verdade é que éramos conduzidos a essa forma de estar em sociedade.

Sabes para onde caminha a tua música?

É um incógnita. Nunca sei o que me vai sair. Mas sei que vai ser de certeza diferente daquilo que fiz agora. E já ando à procura. Sem quaisquer bloqueios no que diga respeito à estética musical. Ainda hei de atingir a simplicidade. Sem ser simplista.

Como o O’Neill? Vais tirar as enxúndias?

O Fausto diz: rasgar papel. É esse o caminho que me falta trilhar. O resultado logo se verá.