Essa comunicação foi facilitada à medida que fadistas como a Mariza ‘ensinaram’ o fado a quem não compreendia uma palavra?
Quando estou em palco, existe uma fórmula de dar. As primeiras quatro canções servem de habituação ao público, ao local e às emoções, mas depois começo a respirar e apresento ao público algo que não conhece. Algo que faz parte da minha raiz e do meu povo. Naquele momento, sou a representação e começo a explicar, antes de cantar cada fado, de onde vem, a sua essência e as palavras: o amor, a saudade e o que significa o próprio fado. Quando existe essa explicação, o entendimento é maior. Mesmo em Portugal, onde não há a barreira da língua – e costumo dizer que a música não tem barreiras –, cada pessoa pode ter a sua interpretação, por exemplo, do Ó Gente da Minha Terra pela sua vivência. Há formas completamente diferentes de sentir aquele poema a partir da experiência de vida de cada um. Porque há pessoas que trabalharam fora e regressaram a Portugal, ou porque se tem familiares fora, ou porque se sente o país de forma intensa; cada pessoa tem uma história que a faz sentir a música à sua maneira.
Sentiu a responsabilidade de ser porta-voz do fado?
[A responsabilidade] vai sempre existir. Desde que tomei essa consciência que percebi que tinha uma grande responsabilidade. Carrego a cultura de um povo, a canção de um país e a língua. Agora, eu tenho um problema. Sou um bocadinho perfeccionista e tento fazer cada vez melhor.
Onde é que o fado já chegou?
O fado está mano a mano com outras músicas incríveis. Às vezes, estou em festivais com artistas que admiro como a Diana Crawl, a Pink ou oSting. É incrível perceber onde já chegou. A exigência e a maturidade. Consegue estar nos mais maiores festivais do mundo, nas maiores salas e com as maiores programações.
Lisboa é uma cidade em mutação. O fado também?
Completamente. É doloroso para os puristas, mas para isso existe o reconhecimento da UNESCO [Fado Património Imaterial da Humanidade]. Para preservar o fado tradicional. Reconhecendo o que é tradição, é possível dar o passo em frente em direção à mutação. É como a história: se soubermos quem somos, conseguimos andar orgulhosamente em frente com a certeza do que estamos a fazer. Se não nos conhecermos, podemos dar esse passo mas é a medo. Com o fado passa-se o mesmo. Por isso, o fado tradicional está protegido. Há um Museu do Fado onde as pessoas podem visitar, aprender e estudar. Como funciona a métrica do fado tradicional, como se conta [uma história], como se toca e constrói uma guitarra portuguesa. Essas bases existem.
Estando a identidade preservada, como vê a democratização do fado?
É verdade, até estrangeiros! Muitos aprendem por fonética. Já me aconteceu em países como a Sérvia, a Polónia e o Japão – e atenção que é um país gigante mas o núcleo [de seguidores] é pequeno – conhecer pessoas que tentam aprender as nossas tradições e fazer parte delas. É motivo de orgulho.
A relação do exterior com o fado também se alterou?
Sim, porque o fado deixou de ser a jóia mais bonita da casa para passar a ser uma jóia exposta que as pessoas têm oportunidade de ouvir esta música que é tão especial. Há muitas músicas do mundo, conheço várias e sinto-me grata por isso mas a música na qual penso que se consegue exprimir melhor os sentimentos é o fado.
O que o torna diferente de outras músicas identitárias e emocionais?
[O fado] é muito visceral. Tem que ser feito com alma. Se não for assim, não tem verdade. O fado canta os sentimentos da vida e muitas vezes é irracional. Há uma frase de um fado do Fernando Maurício de que gosto muito e até gravei que diz: «sinto-me só/sabe-me a boca a fado». Isto é muito emotivo. É uma coisa dorida. E o fado tem uma coisa maravilhosa: quando a gente canta, a alma é limpa. E estamos preparados para voltar a cantar outras feridas. Essa é a magia.
O fado é possível sem dor?
Sim, há fados alegres. Há o Lisboa Menina e Moça. Mas são fados musicados. Os fados tradicionais são baseados no sentimento. Mais pesados e dolorosos.
Como é que se relaciona com o passado musical?
É interessante porque ouço o primeiro disco e digo: «Caramba, a voz era tão miúda». Tinha 26 anos, faltava-me o peso de tantos palcos. Mas depois penso: «Se calhar se cantasse isto agora, seria de outra maneira mas a essência seria a mesma».
E a inocência?
(ri-se) Mudou. Já não sou tão inocente assim. Às vezes, quando tenho oportunidade de ir ver concertos com amigos dizem-me: «xi, esta música!». Eu já perdi a inocência. Já estou a ver se as luzes batem certo com a música, se os músicos estão no tempo certo, se a cantora ou o cantor estão afinados. Já estou sempre a tentar perceber o que está por trás.