‘Nunca fui amiga de Sócrates, mas custa-me ver os que o foram agora fingirem que nem conhecem’

Gabriela Canavilhas abandonou o Parlamento há seis meses e garante que não tem saudades ‘nenhumas’. Assume que a experiência no poder local foi uma desilusão e não tem planos para regressar à vida política. Defende as touradas e lembra que como ministra da Cultura sempre tratou esta atividade como as outras artes.

‘Nunca fui amiga de Sócrates, mas custa-me ver os que o foram agora fingirem que nem conhecem’

Há seis meses fora do Parlamento, a ex-ministra da Cultura de José Sócrates e antiga deputada do PS assume estar desencantada com a política e não sentir falta «nenhuma» da rotina das atividades partidárias. Canavilhas considera António Costa um «estratega político extraordinário», porque conseguiu manter a geringonça durante quatro anos. Cenário que a antiga deputada não acreditava ser possível, não deixando de salientar que os portugueses não podem estar satisfeitos com os baixos salários, aponta o aumento salarial como o desafio para a próxima legislatura.  Sobre o caso de José Sócrates a antiga deputada diz ao SOL que não era próxima do antigo primeiro-ministro mas critica aqueles que dele se afastaram.

Decidiu abandonar o Parlamento. Estava cansada da política?

Estava na altura de procurar outro tipo de realização pessoal. O Parlamento tem características muito interessantes, mas é sobretudo um espaço de afirmação para quem tem uma vocação partidária. Não tenho, nem nunca tive, uma carreira no Partido Socialista. E dentro do grupo parlamentar senti, durante os sete anos que lá estive, que o bichinho partidário nunca se instalou em mim. Para crescer dentro do grupo parlamentar e entrar no jogo de poder teria de deixar crescer essa vontade para subir nas escadarias da hierarquia partidária. Nunca senti em mim essa vontade.

Era desejável que o funcionamento do Parlamento fosse menos dependente da vida partidária?

Faz parte da lógica. Não contrario isso. Não é uma coisa má. Ou se aceita esse jogo ou não se aceita. Não se aceitando pode fazer-se um trabalho interessante no Parlamento e fi-lo durante sete anos. Mas o Parlamento é o espaço ideal quando se quer muito fazer uma vida partidária. Não senti em mim essa vocação.

Porquê?

É preciso entrar na vida partidária mais cedo e ser formatado mais cedo. É uma vida muito hierarquizada com cedências permanentes a estruturas de poder. E para quem sempre teve uma vida muito independente, do ponto de vista do pensamento, é preciso sujeitar-se a essa moldagem.

Não estava disposta a fazer esse tipo de cedências?

O que digo é que chega a um ponto em que somos mais felizes a fazer outras coisas. Nem toda a gente no Parlamento tem retaguarda e tem vida própria para além da política.

Isso não é preocupante…

É um bocadinho assustador. Algumas pessoas continuam no Parlamento por não terem alternativa. Começaram demasiado cedo na política e mantiveram-se anos e anos sujeitos a estas lógicas. E, portanto, quem tem a possibilidade de ter alternativas muitas vezes opta por sair. Se olhar para o Parlamento vê que saíram muitos deputados. Mas posso fazer política e intervir socialmente sem ser através do Parlamento. Pretendo continuar a fazê-lo.

Apesar desse desencanto com a política ainda foi candidata à Câmara de Cascais. Gostou dessa experiência?

Ainda estava no Parlamento. Se calhar, a minha candidatura em Cascais e a passagem pela câmara contribuíram para a decisão de abandonar a política. Foi uma experiência que me mostrou o pior lado da política. Ajudou a desiludir-me completamente. Depois da minha experiência em Cascais fiquei a ver a política de uma maneira muito mais crua e isso desencantou-me por completo. Normalmente os olhares públicos estão muito centrados na Assembleia da República, o escrutínio público sobre os deputados é enorme, mas se esse escrutínio fosse sobre as câmaras, ai Jesus. O que se passa nas câmaras é muitíssimo mais grave do que aquilo que se passa no Parlamento. Aquilo a que assisti na Câmara de Cascais foi de tal maneira surpreendente que perdi completamente a vontade de continuar na política. Lamento muito que não haja um escrutínio muito mais sério do que se passa nas câmaras municipais.

O que a surpreendeu na câmara?

A relação das câmaras com os contratos públicos e com a comunicação social… São coisas muito graves. Por exemplo, em dois anos a Câmara de Cascais fez contratos de 400 mil euros com a Cofina. Vi os contratos, aprovados em sessão de câmara, para organizar uma festa de Natal quando sabemos muito bem que essa não é a missão da Cofina – é com outros interesses como é evidente. Fez contratos com a dona do jornal ‘Eco’ na ordem de dezenas de milhares de euros para artigos favoráveis à Câmara de Cascais. Coisas deste género. Isto está no limiar da legalidade. O_Ministério Público devia olhar para isto. Ninguém se preocupa com isto e muito menos os partidos querem fazer averiguações.  Não querem enfrentar a comunicação social, nem o Ministério Público, mas há aqui grandes poderes que se sobrepõem sempre ao escrutínio. Tudo isto deixa-me muito desiludida com a transparência na política.

Alguma vez sentiu que o facto de ser mulher condicionou a sua atividade na política?

O PS é um partido muito antigo. Foi formado poucos anos antes do 25 de Abril, mas tem uma história que assenta nos valores maçónicos, muito masculina e misógina. Todos estes valores ficaram muito entrosados no PS. O CDS ou o Bloco de Esquerda são muito mais abertos à igualdade. São liderados por mulheres.

Isso não seria possível no PS?

Não vejo, nas próximas gerações, a hipótese de uma mulher liderar o PS. Na sua lógica interna faz um esforço para a igualdade e a prática é clara. Todos os grandes diplomas para a igualdade foram aprovados pelo PS. Todos os grandes passos foram dados pelo PS, mas é um partido de homens. Isso sente-se, no dia a dia, nas bancadas do grupo parlamentar e nas reuniões. No PS espalhado pelo país.

Voltou a dar aulas? Como é que vive desde que deixou a política?

Vivo frugalmente (risos). Estou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) a fazer um doutoramento. Passei a ser aluna. Sempre gostei muito de estudar e estou muito entusiasmada. Aquilo que mais nos enriquece é o que nós aprendemos. Voltei para os quadros do Conservatório de Lisboa, estou num projeto do Ministério da Educação que apoia as escolas do ensino básico nas áreas da música e da dança e tenho um programa na Antena 2 que me dá muito trabalho, mas também muito prazer.

Como é que um ministro da Cultura lida com a ideia de que, numa altura de crise, há sempre investimentos mais importantes noutras áreas.

Apanhei o período mais difícil de todos, mas aos poucos começa a existir uma consciência cultural. Hoje, um candidato a primeiro-ministro tem mais cuidado na forma como encara a Cultura. Há uma visão diferente sobre a importância política da Cultura.

Este Governo já teve três ministros da cultura. Esta instabilidade tem prejudicado o setor?

Não há dúvida disso. Se contarmos o número de ministros da Cultura que houve de 2000 até hoje e comparamos com as outras áreas é assustador. Não ajuda em nada para desenhar as linhas programáticas a longo prazo. As mudanças de ministro acabam por ser prejudiciais, porque se alteram os caminhos para as medidas.

Encontra alguma explicação, nomeadamente nos últimos três anos, para as mudanças de ministro?

Há uma tentação de ceder às pressões públicas e isso não é bom. Houve alguns casos em que isso foi muito claro e talvez pudesse ter sido evitado.

Uma das primeiras intervenções desta ministra foi contra as touradas. Como é que viu essa posição?

A posição que exprimi quando estava no Governo é a mesma que tenho. A tauromaquia é uma expressão cultural portuguesa e quanto a isso não há nada a fazer. E enquanto for uma expressão cultural portuguesa, tutelada pelo ministério da Cultura, tem de ser regulada pelo ministério. O titular da pasta deve tratá-la como trata todas as outras e, se calhar, não deve exprimir a sua opinião pessoal sobre o teatro, o cinema, a tauromaquia, as artes visuais… Deve ser igual a qualquer coisa.

O que está a dizer é que a ministra não devia ter dito, no Parlamento, que a tauromaquia ‘não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização?

O que digo é que não está previsto no programa do Governo nada que altere a situação da tauromaquia enquanto expressão artística popular e, portanto, o ministro da Cultura tem direito a ter a sua opinião, mas deverá falar em nome pessoal e não como ministro da Cultura.

Foi favorável à aliança do PS com os partidos de esquerda?

Confesso que na reunião da Comissão Nacional do PS  em que esse assunto foi tratado até me pronunciei cautelosamente. Achava que não ia dar certo. Julgava que era muito difícil, mas enganei-me e ainda bem. Isto só mostra como António Costa é um estratega político extraordinário. Conseguiu, de facto, levar a bom porto o programa do PS com o apoio de dois partidos de esquerda que tinham visões diferentes das medidas que foram aprovadas. Isto é de uma capacidade política inestimável. O mérito é do primeiro-ministro. Repare que este Governo implementou uma política económica que não tem nada que ver com a politica económica do PCP e do BE. Isto é notável.

Mas existe muito descontentamento e muitas greves. Este Governo criou demasiadas expectativas?

Vários setores estão a querer mais, porque a economia melhorou. É legítimo que assim seja. O grande problema da economia são os salários baixos. Como é que os portugueses podem estar satisfeitos com salários de 700, 800 ou 900 euros? A luta dos professores é justíssima. O primeiro-ministro  também pensa assim, mas não é compatível com as metas do Governo. O desafio para a próxima legislatura deve ser a subida dos salários.

O PS precisa da maioria absoluta para implementar determinadas reformas?

Não tenho qualquer dúvida de que o PS vai ganhar as próximas eleições e existem condições para uma nova geringonça.

Não preferia que o PS tivesse maioria absoluta?

O que aconteceu nestes quatro anos correu bem para o país. O que é importante não é o que corre bem para o PS. O importante é que corra bem para os portugueses. Os portugueses querem repetir a geringonça e apostam na renovação deste modelo.

Ao contrário de outras pessoas no PS nunca se distanciou de José Sócrates. Como é que vê algumas declarações de pessoas que lhe eram próximas a distanciaram-se e a dizerem que o caso Sócrates envergonha os socialistas?

Nunca me distanciei, nem nunca me aproximei. Não conhecia José Sócrates antes de ir para o Governo. A primeira vez que o vi foi na tomada de posse e depois de sair do Governo vi-o duas vezes: no lançamento do livro e num almoço. Ao contrário do que se pensa, não tenho uma proximidade especial com José Sócrates.  O que rejeito são estas posições públicas a bater numa pessoa que está caída. Acho indigno. Os julgamentos fazem-se nos tribunais. Vamos esperar que o tribunal decida o que se passa. Um dos grandes problemas deste processo é a quantidade de pessoas que vieram pronunciar-se na praça pública. Chega de achismos.

Mas a partir de certa altura o PS  mudou de estratégia em relação a este caso. Algumas das pessoas que tinham uma grande proximidade com Sócrates acabaram por se afastar.

Houve pessoas que tinham uma proximidade muito grande com ele, fizeram uma carreira política ao lado de José Sócrates, e sentiram essa necessidade. Não foi o meu caso. Não fiz nenhuma carreira política ao lado dele e não tinha proximidade nenhuma com ele. Confesso que não me interessa. Este assunto José Sócrates é demasiado triste. Vamos aguardar que os tribunais se pronunciem.

Tem sentido falta da política?

Nenhuma. Não tenho sentido porque consegue ser muito absorvente, mas também me custa muito ouvir as pessoas falar mal do Parlamento. A maior parte das vezes as críticas são muito injustas. O Parlamento é uma casa onde se faz um trabalho sério e indispensável à democracia. Mas também não há dúvida de que o nível dos deputados tem de subir. 

Acredita que isso vai acontecer?

Reconheço que isso é um bocadinho difícil por causa das inerências partidárias. Há as federações, as jotas, os ex-presidentes de câmara que acabam a carreira no Parlamento…

Isso devia mudar?

Há várias práticas que acabam por condicionar as escolhas e, muitas vezes, não é possível escolher os melhores. Mas há uma coisa que me escandaliza. Vejo os cartazes na rua de André Ventura que considera que 100 deputados bastam e sobram… Isso significa que, na opinião dele, o Parlamento não é necessário. Quando se está a advogar que não é necessária representatividade democrática estamos no cúmulo da negação da democracia. O que vale é que ninguém lhe liga nenhuma.