Um museu a alta velocidade

O Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento, completa agora três anos e, na próxima quarta-feira, pode ganhar o prémio de melhor museu da Europa. O SOL foi perceber qual é a fórmula para o sucesso.

Um museu a alta velocidade

Todos os anos, a turma de 1966 da Escola de Aprendizes Ferroviários do Barreiro continua a reunir-se para reavivar memórias. Nem todos os membros se tornaram ferroviários – uns foram para a Lisnave, outros trabalham em empresas de refrigerantes -, mas todos mantém entre si o carinho de quem começou a vida nas escolas da Comboios de Portugal (CP). Desde que o Museu Nacional Ferroviário (MNF) abriu portas, em 2015, que este grupo escolheu o local para se reunir e é à frente de um objeto que doaram – um baú de ferramentas – que a diretora do MNF, Ana Fontes, escolhe fazer a primeira paragem durante uma visita do SOL. 

Afinal, aquela humilde caixa simboliza o que era ser ferroviário e encerra também a essência da memória de uma das profissões que moldou o país nos últimos dois séculos.

«Quando os aprendizes entravam na escola, aos 14, 15, 16 anos, uma das primeiras tarefas era construir a sua própria caixa de ferramentas. Construíam tudo, desde a própria caixa às ferramentas e aos fechos. E em muitos casos estas eram as caixas que os acompanhavam durante toda a sua carreira, portanto eram objetos pessoais», explica. «A escola de aprendizes da CP foi muito importante do ponto de vista da formação porque deu mão-de-obra qualificada não só para os caminhos-de-ferro mas para outras indústrias como a CUF numa altura em que o ensino não era democrático como hoje. Esta caixa, oferecida pela turma de 1966 que agora faz aqui as reuniões, simboliza a ideia de que isto não é só um museu, mas um espaço de partilha onde as pessoas se sentem bem e regressam».

O museu, que fica do lado esquerdo para quem sai na estação de comboios do Entroncamento, tem um projeto museológico e uma dimensão surpreendentes. Espraia-se por 4,5 hectares, embora de momento só 2,5 sejam visitáveis. «Há uma parte ainda por reabilitar, estamos à espera de novas oportunidades de financiamento até porque aquilo que vão ver aqui foi financiado na sua maioria por fundos comunitários QREN/Mais Centro e o Turismo de Portugal».

Apenas três anos após a abertura e depois de chegarem a surgir notícias de que o museu poderia fechar no início deste ano por falta de financiamento, o MNF é um dos quarenta finalistas do Prémio Museu Europeu do Ano 2018 (EMYA), a mais prestigiada distinção da área da museologia, ao lado de museus como o Carmemj Thyssen (Andorra), o Museu da Cidade de Helsínquia ou o Museu da Ciência, em Londres. O vencedor é anunciado na Polónia já na próxima quarta-feira.

Só há mais um museu português a concurso: o dos Coches, em Lisboa, com um orçamento superior e mais anos de trabalho. O que se passa, então, no Entroncamento para esta nomeação relâmpago? Antes de prosseguirmos, é inevitável contar o longo – e, por outro lado, curto – caminho percorrido até agora.

As vitórias e derrotas de um sonho antigo

A ideia de um museu propriamente dito começou a ser falada no centenário da primeira viagem do caminho-de-ferro – ou seja, na década de 50 do século passado. 

Logo à partida, a salvaguarda das peças históricas foi assumida pela figura do engenheiro Armando Ginestal Machado que dá o nome à Fundação. Com a extinção gradual do vapor e com a entrada do diesel após o plano Marshall, Ginestal Machado tomou «a iniciativa de resguardar muito deste material em antigos depósitos e cocheiras um pouco por todo o país». Hoje estes núcleos museológicos onde o material foi guardado estão em reavaliação, mas foi assim que o comboio real e o comboio presidencial – o The Presidential, que agora faz viagens no Douro e que, no ano passado, foi considerado o melhor evento público do mundo pelo Best Event Awards – sobreviveram. 

Foi preciso chegar aos anos 90 para se decidir que seria o Entroncamento o local ideal para a instalação do MNF e, a partir daí, foi sendo montado, aos poucos, o ‘embrião’ do que hoje vemos. Em 2012, os espaços que já existiam e em que tinha sido ensaiado um trémulo projeto museológico foram encerrados para finalmente, em maio de 2015, abrir o atual e definitivo MNF. Hoje, o acervo da coleção conta com 36 mil peças – há cerca de duas mil expostas no museu.

«Este foi um projeto bastante longo, com percalços. Estamos numa comunidade ferroviária por excelência, e houve muita gente que perdeu a esperança e agora, aos poucos, tem vindo conhecer o museu – são o que eu chamo de visitas de reconciliação».

Para Ana Fontes há, no entanto, um aspeto positivo a retirar deste demorado processo. «Efetivamente fomos um dos últimos países da Europa a ter um destes museus. E de certa forma o atraso tem uma vantagem: fomos colhendo um bocadinho da experiência das tentativas e dos erros dos outros museus de transportes».

As estrelas da companhia

A exposição está dividida em edifícios históricos e, dada a dimensão das locomotivas, é fácil imaginar o tamanho dos espaços.

Depois da parte inicial, localizada no antigo armazém de víveres da CP (uma espécie de supermercado para os ferroviários) e onde se encontra a tal caixa de ferramentas ladeada por apitos, bilhetes antigos de cartão, fotografias antigas, faróis de locomotivas e outros objetos, a visita prossegue e a conversa leva-nos para o encanto – ou pelo menos simpatia – talvez absolutamente transversal a todos por este meio de transporte.

«As pessoas gostam muito de comboios, é quase unânime, sentimos muito isso no museu. Mesmo nos filmes isso acontece. Em breve, esperemos nós, vamos ter também aqui uma parte dedicada a essa componente e às memórias que criamos. Se calhar não nos lembramos tanto de uma viagem de carro ou de avião como uma de comboio.  As pessoas circulam, vão ao bar, conhecem outras pessoas, há uma aura diferente».

E se falarmos dos comboios históricos esse encanto, então, é por demais evidente. É aqui que, nas antigas oficinas a vapor, se guarda o comboio real, o único completo do mundo. 

Ao lado, num espaço a que os funcionários tratam familiarmente por ‘catedral’, destacamos as locomotivas conhecidas pelas ‘três fadistas’: Amália, Celeste e Deolinda. «As três fadistas são as primeiras locomotivas elétricas em Portugal e circularam na Linha de Cascais, a primeira a ser eletrificada no país em 1926/27. Só na década de 60 é que houve o plano geral de eletrificação, mas esta linha foi explorada pela Sociedade do Estoril até 74 – era uma linha privada até ser incorporada na CP. Dizia-se que quando estas locomotivas apitavam no Cais do Sodré se ouvia em Carcavelos, por isso os ferroviários começaram a dar-lhes os nomes de fadistas», conta Ana.

 Já na rua, a zona da ‘rotunda’ – uma plataforma de 1911 ainda em funcionamento – é o cenário escolhido para mostrar as mais antigas locomotivas a vapor do país. Aqui já se fizeram eventos de duas mil pessoas, sessões de cinema, gravaram-se anúncios para os Estados Unidos e houve até um casamento. O próximo passo? «Gostávamos muito de trazer um evento de moda para este local», diz. 

Na calha está outro inusitado projeto à espera de financiamento. «Estas carruagens vão ser um hostel dentro do museu», aponta. «Teremos a carruagem cama, a restaurante, e ali, uma carruagem de compartimentos que vai ser toda convertida em casas de banho e lavandaria». Ao fundo do espaço, há ainda uma mini central elétrica que, no futuro, também será requalificada e aberta ao público.

O grande enfoque desta zona é, contudo, a imponente coleção da tração a vapor, com as locomotivas alinhadas não como soldados, mas antes generais. «Estão organizadas de forma cronológica», explica. «Este espaço que está vazio é para a ‘Andorinha’, que anterior a 1856, é ainda mais antiga do que a locomotiva do comboio real. Está no núcleo de Nine, em Braga, e esperamos que venha para nós em breve».

Um museu feito feito com ‘prata da casa’

Às vezes os astros alinham-se e a história que Ana Fontes nos vai contando parece quase saída de um guião. É que a diretora, nascida e  criada no Entroncamento tem uma ligação ímpar ao mundo da ferrovia e quis o acaso que viesse a dirigir este projeto.

O bisavô era carpinteiro nas oficinas onde hoje descansam as locomotivas históricas. O avô era ferroviário. O pai, já falecido e que nunca quis que a filha enveredasse pelas vias do património – o que fez com se licenciasse primeiro em arquitetura -, também era ferroviário. «Encontro aqui todos os dias os meus primos que são… ferroviários», conta a meio de uma gargalhada, recordando o dia em que, aos 20 anos, apanhou dali, do outro lado da linha, o Lusitano que a levaria a Madrid e daí para um InterRail até à Grécia.

Apesar das ligações, nunca pensou que o seu próprio percurso profissional se fosse cruzar de forma tão direta com a ferrovia. «Nunca na vida me passou pela cabeça vir trabalhar no museu», assume. De um fantasma – a crise, que a fez sair do gabinete de arquitetura em que trabalhava em Lisboa -, Ana, que já estava a tirar o mestrado em Museologia, acabou por voltar para a terra natal e através de um estágio veio parar ao museu numa altura em que ainda não estava aberto, no final de 2013. Parte da sua tese de mestrado acabou mesmo por ser aqui aplicada e foi convidada pela administração, primeiro para liderar toda a frente pública, depois o Museu em si. 

Hoje, fala com a entrega de quem, de um projeto profissional, faz quase uma missão. Mas a entrega da diretora não é um ato isolado. Toda a equipa vestiu a camisola e, garante, ninguém que ali trabalhe está disposto a deixar cair este projeto – e aqui entra para a conversa o bicho-papão de qualquer museu, em Portugal e no mundo: o orçamento. 

Atualizar o orçamento

No final do ano passado, foi noticiado que o museu poderia não abrir a 1 de janeiro por falta de orçamento. A diretora reconhece que já tiveram, «várias vezes», as contas a um nível em que pensaram que não poderiam abrir portas. «Não tem sido fácil, mas neste momento as pessoas que aqui trabalham já não estão dispostas a deixar cair o projeto desta maneira – o que implica que os funcionários, por vezes, interrompam as férias se faltar alguém. A tutela e o conselho de administração estão a fazer tudo para sermos dotados das ferramentas a nível de recursos humanos e financeiros para conseguirmos ter o museu a funcionar porque não houve adaptação: temos o mesmo orçamento para um museu fechado (antes de 2015)». 

Neste momento, o MNF recebe um subsídio anual de apoio à exploração de 264 mil euros e é preciso um milhão. «Isto só para abrir e fechar a porta, pagar contas», resume Ana. Para a diretora, esta é, no entanto, uma realidade «transversal a todos os museus e sobretudo ao setor da cultura», que ali se combate com todas as armas à mão: criatividade, uma dedicação inexcedível ao acolhimento dos visitantes – em três anos tiveram três reclamações para um rácio de três livros cheios de elogios – e, porque não dizê-lo, quebrando preconceitos. «Não temos a ideia de que deve ser o Estado a assumir tudo, de certa maneira vamos tentando quebrar os tabus de que não se podem organizar eventos nos espaços dos museus. Podem e devem. Este é um espaço onde prestamos homenagem aos ferroviários, estamos aqui ao lado deles, homenageamos este património e a história de quem trabalhou na ferrovia, mas não tem que ser um espaço em vida. Há que haver bom senso e para isso é que estão cá os técnicos para marcar barreiras».

Esta abertura aos parceiros e a eventos tem-se revelado essencial para a manutenção do museu. Por exemplo, a Medway-Transportes e Logística foi a empresa responsável, entre outros, por levar gratuitamente desde Elvas ao Entroncamento um vagão socorro que está a ser restaurado. E também foi esta empresa que, recentemente, levou para o museu um evento curioso: o batismo das novas máquinas. «Trouxeram quatro máquinas que estão aqui a circular nesta linha e que batizaram com os nomes dos filhos dos funcionários, ou seja, o museu também está a servir para reavivar tradições do passado da ferrovia, numa altura em que se discute o presente e futuro deste meio de transportes».

Ana Fontes é perentória em afirmar que sozinhos não conseguiam e não se cansa de agradecer a todos os parceiros que, desde o início, «acreditaram no potencial deste projeto». Um trabalho que a nomeação para Museu Europeu do Ano vem também reconhecer.

 E a diretora, pensa vir da Polónia com a medalha de ouro? A resposta sai pronta. «Só a nomeação já é – mais uma – vitória».