O Bloco de Esquerda morreu

Algures no princípio da década de 1990 perguntei a Francisco Louçã se não tinha a angústia da folha em branco – que não, respondeu, quando se sentava para escrever sabia exactamente o que dizer, as palavras não lhe falhavam. Estávamos a caminho de um comício, ele ao volante e mais duas pessoas de que não…

Militava no PSR com convicção. Francisco, a quem todos chamávamos Chico, era o profeta de um novo mundo. Com ele dobrávamos centenas de folhas de jornais pela noite dentro; participávamos em cursos de marxismo numa perspectiva trotskista; especulávamos acerca de Rosa de Luxemburgo e do anarquismo de Bakunine; aplaudíamos as novas ideias em comícios onde sentíamos que os palácios poderiam ruir com a brutal força de uma crença justa.

Fernando Rosas falava nisso. Da força das palavras, capazes por si só de desencadear tempestades perfeitas. Eduarda Dionísio trazia livros mesmo quando não os trazia. José Mário Branco, no final das ‘missas’, cantava ‘Eu Vim de Longe’ como se ele próprio fosse um milagre.

A revolução era um modo de vida, não apenas um divertido part-time. E os jantares no Bar das Palmeiras, a sede do partido, feijoada normalmente, sabiam-me ao que é irrepetível. Afinal, se duas pessoas tiverem os mesmos ingredientes e prepararem o cozinhado da mesma maneira, na mesma cozinha, com o mesmo fogão, terrinas, pratos e talheres, a refeição não saberá ao mesmo. Não se explica, é simplesmente assim. Porque o paladar é um prolongamento de tudo o resto e a comida traz sempre um bocadinho do sabor de quem a prepara – e também de nós. É que também provamos as projecções que fazemos das pessoas, lugares ou estatutos. Em nós o paladar funciona como espelho. Até ele.

A minha história no PSR terminou muito antes do nascimento do Bloco de Esquerda. A revolução permanente morreu em mim, alguns camaradas fizeram-me ver do meu individualismo, das minhas tendências burguesas, da minha incapacidade de entender a dinâmica do que era necessário. Mais do que justo. Tinham razão.

Anos depois nasceu o Bloco de Esquerda. Como imaginar uma plataforma comum a maoistas, trotskistas, libertários, carbonários e até anarquistas? Aceitavam-se apostas. Mas Francisco Louçã, na companhia de Miguel Portas, com o ímpeto das suas juventudes, souberam amplificar as suas vozes, multiplicar os efeitos do que diziam, atordoar as pessoas com um novo vocabulário, uma nova mensagem. Burgueses, também. Cosmopolitas. Urbanos. Criativos, poéticos. Ao pé deles, os comunistas pareciam fósseis e os socialistas e social-democratas, senadores romanos a viver uma cruel decadência. Os comícios passaram das dezenas de pessoas para as larguíssimas centenas. O Bloco de Esquerda cresceu eleitoralmente. Surgiu a excelente Ana Drago, o sempre proscrito Daniel Oliveira e Rui Tavares; traziam ainda assim a superioridade moral de um novo léxico, de uma nova atitude.

Começaram a surgir os primeiros problemas públicos. As primeiras divergências, arrufos, saídas e confusões. O convívio com o poder, a conquista de influência na Assembleia da República, no Parlamento Europeu, sindicatos e até autarquias, fez estragos e provocou divisões. A poesia estava afinal colada com cuspo. Existiria enquanto Francisco Louçã ou Miguel Portas existissem. Enquanto tivessem energia para carregar o barco para a frente. Deixaram de existir. O meu amigo Miguel porque partiu, Francisco por ter perdido a ‘juventude’ e porque decidiu sair por uns instantes – também empurrado por camaradas que acharam ser tempo de refrescar o partido.

O Bloco de Esquerda morreu. Com pena o digo. O país precisava de partidos de vários espectros e origens, que pudessem pôr em causa a linguagem bafienta de quem nos governa ou do único partido que, em alternativa, nos poderá governar.

O Bloco já não o poderá fazer. Ouvir os seus porta-vozes é alimentar um paradoxo, um dos maiores da política portuguesa. O que dizem, e a forma como o fazem, é o oposto do que representou o Bloco para uma franja importante de um eleitorado jovem, idealista e informado. Onde existia poesia existe má prosa. Onde existia cosmopolitismo existe subúrbio. Onde existia cultura existe dogma e histerismo. Onde existiam ideias novas existem palavras gastas.

É de uma agonia que se trata. Uma agonia que terminará um dia com o recurso à eutanásia. A última das fracturas.