Os suspeitos do costume

Já houve quem considerasse exagerada a avaliação feita por Thomas Piketty no prefácio ao recente livro de Gabriel Zucman sobre A Riqueza Escondida das Nações. O laureado economista considera a obra, pequena em extensão, o melhor livro alguma vez escrito sobre paraísos fiscais.

Não o será mas abre a porta para uma mais larga reflexão.

Nele, a primeira ideia motora é esta: os paraísos fiscais – centrados, segundo o autor, no eixo Suíça/Luxemburgo/Ilhas Virgens Britânicas – não decresceram com a crise de 2008, apenas se transformaram, calculando-se que 8% da riqueza global passa por aí, de onde é gerida, qualquer que seja o lugar onde se rentabilizem os fundos respetivos; além disso, o essencial dos meios de fortuna são de origem europeia, com 50% dos 1,3 triliões de dólares existentes na Suíça imputáveis a países da Europa Ocidental.

Outra é que, desde a reunião de Abril de 2009 do G20 que quebrou a intangibilidade do segredo bancário, os valores controladas a partir da Suíça aumentaram 18%, quando o senso comum faria presumir que, receosos, diminuíssem.

Analisando a evasão fiscal através dos paraísos fiscais onde a fortuna está poupada a impostos, o livro desconsidera, porém, dado o seu objeto, outras facetas que são o quotidiano do nosso discurso judiciário sobre o problema.

Primeiro, há quem esteja rotinizado para a inferência de que toda a evasão fiscal está correlacionada com o branqueamento de capitais e assim as offshore serão, nessa perspetiva aglutinadora e como tal redutora das coisas, simultaneamente veículos para escapar à tributação e modo de dissimular dinheiro de origem ilícita.

Esta associação de ideias, já se viu, encontro eco no espaço mediático. Questão é quando ela se torna filosofia de ação no campo da justiça penal, criando arbitrariedade nas conclusões. Dizer que a fuga aos impostos por alguns faz com que a parte omitida tenha de ser suportada pelos demais contribuintes – nomeadamente os que têm rendimentos controlados – é afirmar uma verdade; tentar demonstrar que o Estado, credor legítimo da prestação fiscal, faz dela uma racional e socialmente útil aplicação, já é tentar fazer passar por verdade aquilo que é discutível; mas esforçar-se o sistema por presumir na evasão fiscal uma alma gémea da origem criminosa dos fundos, que assim seriam por sua natureza indeclaráveis, é generalizar e como tal mentir.

Amelhor demonstração disto mesmo está na Justiça penal fiscal negociada – em que, recuperando-se em acordo processual penal os impostos subtraídos em fraude ou abuso, mesmo aqueles que a autoridade tributária já viu caducar o direito a cobrar e mais umas alcavalas – a Justiça desinteressa-se do demais, nomeadamente da origem desse capital.

Segundo, em muitas mentes está adquirida a ideia de que as dificuldades financeiras pelas quais passam os países e a falta de liquidez na banca nacional – com a concomitante retração do crédito ao investimento – passa pela circunstância de esse capital se encontrar em jurisdições de conveniência. É uma falácia que dá para culpar ‘os suspeitos do costume’, aliviando os da política.

Enfim, centrados na ótica doméstica, esquece-se amiúde que o problema nuclear decorre a nível internacional e por causa da globalização da domiciliação de empresas de larguíssimas dimensões em zonas fiscalmente aliciantes, onde são escassissimamente tributados os seus lucros, contabilizando aquelas os prejuízos em jurisdições mais penalizadoras fiscalmente.

*Advogado