Comerciantes pagam até para ter flores à porta da loja

     

Resistiu à passagem de várias gerações, à multiplicação das Bertrand e FNAC e até ao incêndio do Chiado. Em 175 anos de história, a Livraria Férin, espaço histórico de Lisboa, só não conseguiu escapar àquilo que atinge todo o comércio da cidade: o pagamento de taxas municipais pelo uso do espaço público.

João Paulo Pinheiro, um dos proprietários, faz questão de manter na fachada algumas das coisas que tornam esta livraria diferente de todas as outras que existem na capital. Os vasos à entrada, por exemplo, foram colocados sob supervisão de Siza Vieira, o arquiteto convidado para desenhar um novo Chiado, depois do incêndio que quase o destruiu por completo, em 1988. Mas nem esse trunfo o impede de ter que pagar 317 euros por ano para ter duas plantas a servir de porta de entrada ao número 70 da Rua Nova do Almada.

Em cima de cada um desses vasos estão dois expositores de madeira. «Apenas saem da parede por 2,5 centímetros», esclarece o proprietário. Mesmo assim, são 42 euros que tem de pagar por ano por cada vitrina que usa para expor os livros. A juntar a estas duas taxas, está uma terceira, mais comum e que se refere ao toldo com o nome da livraria. Por isso, João Paulo paga 89 euros por ano. Contas feitas, só por estes apontamentos no exterior da loja, os proprietários pagam 490 euros.

Casos como o da Livraria Férin multiplicam-se pela cidade e já há quem se una para lutar contra o pagamento destes tipos de taxas.

Luta pela isenção

O Círculo das Lojas, associação  que  agrega os comerciantes das zonas históricas de Lisboa e os defensores de melhores condições para quem tem negócios nessas freguesias, já apelou às Juntas da Misericórdia, Avenidas Novas,  Alvalade, Santa Maria Maior, Santo António e São Vicente, para que sejam estas a assumir esse custo. Isto porque desde 2013 que a cobrança de taxas de ocupação do espaço público passou a ser da competência das juntas de freguesia e não da Câmara.

Esta alteração, prevista na reorganização administrativa de Lisboa, fez com que muitas dessas taxas, por vezes esquecidas no tempo, fossem novamente exigidas.

Vítor Castro, proprietário da Príncipe Real Enxovais, foi um dos proprietários surpreendidos pela visita de um fiscal. A sua experiência num negócio que lhe ficou de herança faz com que tenha os valores na cabeça, mesmo que ainda na antiga moeda. O anúncio luminoso colocado na altura da abertura da loja custava por ano 10 mil escudos (50 euros). «Passados uns anos, passou a 100 mil escudos, a que se juntava uma ou duas reparações anuais», conta ao SOL Vítor Castro.

O néon tornou-se insustentável e, por isso, o proprietário decidiu retirar as luzes. No ano passado, a fiscalização da Junta exigia uma atualização das contas que faria com que pagasse 90 euros por ano só pelo placard luminoso. «Tentei explicar ao fiscal que não tinha luzes há anos, mas foi preciso tapar o buraco das lâmpadas com rolhas de cortiça para que me levassem a sério», recorda. Este método extremo serviu para que passasse a pagar a taxa apenas pela sinalização, tendo-lhe sido retirada a taxa pelo facto de ser luminoso.

Lista de taxas: 13 páginas A4

Umas ruas abaixo, no Rossio, a luta do proprietário da tabacaria Mónaco prende-se com os expositores que tem à porta e que acabam por ser o chamariz dos produtos que tem à venda no interior. Os três iniciais, onde expunha postais e guias turísticos, custavam-lhe mil euros por ano, com renovação de pagamento marcada para este mês. Atualmente, reduziu para apenas um expositor e, por ser a primeira vez que terá um novo valor a pagar, ainda não fez contas à despesa.

A lista de taxas municipais enche 13 páginas A4 e, mesmo que o foco esteja apenas naquelas relativas ao uso do espaço público, a lista continua a ser longa.

A jurista da União de Associações do Comércio e Serviços de Lisboa, Ana Cristina Figueiredo, ajudou o SOL a decifrar algumas das dezenas de alíneas que dão conta do valor que cada comerciante tem que pagar por tudo o que coloca fora do estabelecimento.

«Podemos estar a falar de esplanadas, mas também de letreiros ou até flores que sirvam de decoração», explica. O espaço ocupado por cada peça é que que dita o valor final a pagar. Assim, a «ocupação e a utilização da superfície do espaço público de caráter duradouro» custa 156,55 euros/ano por metro quadrado. Se falarmos de algo de caráter temporário – «como uma tabuleta com um menu especial de Natal ou do Dia dos Namorados», dá como exemplo a jurista – esse valor desce 40 cêntimos/dia por metro quadrado.

Juntas remetem para a Assembleia Municipal

Também a publicidade feita ao estabelecimento não escapa a uma taxa municipal, que varia conforme o género de anúncio e até da sua localização. Caso a publicidade seja apenas a anunciar o nome do espaço, o valor a pagar é de 0,40 cêntimos/dia por metro quadrado, mas se essa publicidade for luminosa, o valor sobe para 55 cêntimos. Se o anúncio estiver fora do local onde o comerciante exerce atividade, esses valores passam a 85 cêntimos (placard normal) e 1,05 euros/dia por metro quadrado (placard luminoso).

Todas estas taxas passaram a ser receita das juntas de freguesia e, em resposta ao Círculo de Lojas, uma iniciativa do movimento cívico Fórum Cidadania LX, o presidente da junta de Santo António já fez saber que não será da sua competência «proceder a quaisquer alterações e/ou atribuição de isenções». Tiago Lopes, do departamento de licenciamento da Junta explica que essa ação «é competência, em exclusivo, do órgão que tem poder para aprovar o referido regulamento, in casu a Assembleia Municipal».

A resposta do grupo de comerciantes e moradores não se fez esperar, tendo já reencaminhado o pedido para a presidente da Assembleia Municipal. Na carta dirigida a Helena Roseta, pedem para que seja tomada como prioridade a «inadiável alteração ao Regulamento de Taxas Municipais em vigor, de modo a que seja aplicada, tão breve quanto possível, a isenção das taxas às lojas-membro do grupo».