Amnésias de conveniência

Vivemos um país de anonimatos. Desde a escrita jornalística – quando cita fontes não identificadas, com aspas, em discurso directo -, às redes sociais e aos sites de jornais, poluídos de comentários encobertos. É um modo de ser muito lusitano, que tem, como se sabe, antecedentes históricos.

Aliás, foi precisamente graças a uma carta anónima – como voltou a recordar Vítor Constâncio -, que o Banco de Portugal, ao seu tempo de governador, conseguiu aperceber-se de que alguma coisa de anormal se passava no BPN. Sem esse documento, silencioso e apócrifo, o banco central teria continuado a supervisionar o vazio, sem dar por nada.

Aliás, o BdP, ao tempo de Constâncio, quando não recebia cartas anónimas, nem sequer lia a revista do Expresso – que inseria regularmente um anúncio de página inteira a promover um tal «retorno absoluto» do Banco Privado, sem que alguma vez tivesse intervindo – que se saiba – para pôr cobro a uma publicidade continuada e enganosa, com os resultados que se viram.

Custa a compreender.

Agora, Vítor Constâncio reagiu lesto à declaração de Durão Barroso, que revelou tê-lo convocado, enquanto primeiro ministro, por «três vezes», para saber «se aquilo que se dizia do BPN era verdade».

À distância, Constâncio não nega que houve encontros, mas alega em sua defesa que apenas se lembra de «uma conversa geral em que se falou de preocupações com o BPN», sem ser «exclusivamente». Amnésia parcial…

Barroso governou entre 2002 e 2004. A nacionalização do BPN ocorreu em 2008, ano da primeira comissão parlamentar de inquérito. De então para cá, o contribuinte assumiu muitos milhões para tapar o buraco do BPN. Para este enorme escândalo público, sobeja um culpado, em casa, com pulseira electrónica…

A meses de terminar o mandato à frente da Comissão Europeia, o ainda presidente não foi inocente no regresso ao terreno da política paroquial, e na escolha do tema BPN. Como não o foi ao repetir que o resgate e a troika se deveram ao facto de Portugal estar «à beira do precipício (…) A situação era desesperada».

De uma assentada, ajustou contas com Constâncio – ‘premiado’ pelo seu desempenho no BdP com o lugar de vice-presidente do BCE -, e com Sócrates, que levou o país ao descalabro e que ainda continua beneficiário de tempo de antena na RTP, para lavar o passado recente e zurzir nos seus ódios de estimação.

Espaço precioso, como ainda se viu no último domingo, ao apresentar-se como guardião de Constâncio – e de língua afiada para Rodrigues dos Santos , por este se atrever a contraditá-lo. O ‘comentador’ gosta de ‘deixas’ e de ‘caixa de ponto’. Não gosta de ser posto ao espelho.

Candidato, ou não, à sucessão de Cavaco – de quem foi delfim -, Barroso agitou as águas e ficou a ver o efeito das ondas de choque. E estas não tardaram. De ex-governadores a Soares, de capa e espada…

Quanto ao BPN, enquanto os processos se arrastam nos tribunais ( correndo o risco de prescrição?), para Constâncio «o caso está terminado». Para o contribuinte, não.

Mas intui-se que a falha da regulação não lhe tira o sono. A sinecura dourada do BCE está para durar, com o pelouro… da supervisão bancária. Merecido!