Ave Maria, bendito é o seu gene

Há quem olhe para ele com a bonomia de quem está perante um louco ou uma personagem literária do quilate de um D. Quixote. Mas parece que Craig Venter é um ser humano como os outros, talvez só um bocadinho mais dado à aventura do que o cidadão comum.

mas quem acabou de ler estas linhas foge logo para a tese do louco. este norte-americano de 66 anos promete criar vida em laboratório, sem fecundação ou outra forma, assexuada ou não. numa espécie de imaculada concepção, mas real, o biólogo propõe-se criar o ‘genoma ave maria’, o nome de código que inventou para as sequências de genes, segundo a perspectiva da sua equipa especializada, que possibilitam o surgimento de um ser vivo. estando completa, essa sequência vai definir uma forma de vida inédita na terra e, sobretudo, inimitável.

as experiências começaram a meio do ano passado. a equipa ainda está numa fase de tentativa e erro e o momento ‘eureka’, garantem no instituto fundado pelo biólogo na califórnia – e que leva o seu nome –, está próximo. «estamos a tentar sequenciar o genoma de uma forma mais lógica», disse na altura ao new york times. «e estamos a fazê-lo de uma maneira que, se houvesse um deus, era assim que ele faria».

a nova forma de vida terá, como outras linhas de investigação de craig venter, marca registada. neste caso, os direitos de autor também se cobram, como patentes. e esta será talvez uma das mais valiosas da história.

em 2010, o investigador anunciou uma descoberta e publicou um artigo a propósito de uma experiência semelhante. mas, dessa vez, a forma de vida sintética criada em laboratório partiu dos genes (também reproduzidos em laboratório) de uma bactéria chamada mycoplasma mycoides. o sucesso da experiência impressionou a comunidade científica, mas não teve o eco mediático que talvez merecesse.

é neste ponto da história que se impõe a pergunta: mas qual será o interesse de venter em bactérias e em brincar a deus com formas de vida sintéticas, surgidas do nada? pois, o interesse económico, sempre ele, sobrepõe-se a estas experiências, que são paralelas a outras investigações a que a equipa se dedica há anos.

fungos operários

brincar ao criador é uma espécie de passatempo dos intervalos do biólogo e da equipa, quase como um treino, complexo, do que realmente se está à procura. venter persegue a ideia de desenvolver formas de vida que possam ser alteradas e que depois consigam reproduzir-se para aumentar a eficácia de máquinas, mas também de produções agrícolas.

a ideia é simples. complicado, como é hábito, é chegar lá. tendo em conta o papel que microrganismos como as leveduras desempenham no fabrico do pão ou da cerveja, ou que a penicilina é resultado da acção de outro fungo, o penicillium, por que não se há-de aproveitar essas potencialidades para carregar computadores ou smartphones? seria uma maneira interessante de poupar electricidade – logo, chegar ao mote obsessivo dos tempos que correm, poupar custos – e de aumentar a capacidade de autonomia dos aparelhos electrónicos.

a indústria farmacêutica poderia beneficiar também destes microrganismos, uma vez que já utiliza versões geneticamente modificadas para a produção de insulina para diabéticos, por exemplo.

mas a produção agrícola é outra das preocupações de venter. criar organismos que multiplicassem a produção de cereais ou de outros géneros de base da alimentação humana poderia ser uma segunda revolução agrícola. tendo em conta a multiplicação demográfica na terra, a utilidade não teria mãos a medir.

e haveria ainda outras aplicações: na cosmética, algumas bactérias sintéticas poderiam reproduzir-se para desenvolver novos aromas. a ideia pode ser difícil de aceitar, na medida em que os lugares onde se instalam estes seres não primam pela estética ou pela higiene. mas, já dizia o músico e produtor brian eno, que esteve envolvido na criação de um perfume nos anos 80, que o que há de comum entre as boas fragrâncias é que se junta sempre, no seu fabrico, «alguma coisa que fede».

venter iniciou esta saga genética em meados dos anos 90. começou com uma corrida, pelos seus meios, à sequenciação do genoma. os rivais da época eram de peso, algumas instituições estatais norte-americanas. em junho de 2000, foi a washington anunciar a sua grande descoberta, a par de francis s. collins, director do programa governamental que ia no mesmo sentido: a sequenciação, até aí inédita, do genoma humano. no auditório estava o então presidente bill clinton, que levou depois os dois à casa branca para o grande anúncio.

craig venter é hoje um rico produtor de biologia, e um aventureiro. em 2003, iniciou uma viagem marítima à volta do mundo com a sua equipa, para encontrar novas espécies – e, já agora, espécies que lhe dessem algumas luzes para as experiências actuais – e conseguiu voltar com centenas de achados. demorou dois anos, mas a odisseia valeu a pena.

ricardo.nabais@sol.pt