Barbados. Corre-lhes pelo sangue como a água do mar

Trazido para esta ilha minúscula pelos ingleses, pois claro!, o críquete tornou-se numa instituição nacional. O Kingston Oval de Bridgetown é o maior recinto desportivo do país. E eles são bons! Mas mesmo bons. São bons há mais de cem anos!

BRIDGETOWN – O dia 10 de Julho de 2020 foi dia de luto em Barbados, da ponta de Flatfield, lá para norte, a Cane Vale, na ponta sul. Sir Everton Weeks chegou aos 95 anos e achou que já era suficiente. Mergulhou no abraço tétrico da Senhora da Gadanha e partiu. Era o último dos The Three Ws, um grupo formado por ele, por Frank Worrell e Clyde Walcott, que não ficaram apenas famosos por terem sido jogadores de exceção, mas porque lutaram bravamente contra a exclusão dos coloreds de um desporto praticado essencialmente por meninos ricos de faculdades finórias de Inglaterra. Sir Clyde Leopold Walcott resolveu ir antes de Weeks e morreu no dia 26 de Agosto de 2006, com 80 anos. Mais precipitado foi Sir Frank Mortimer Maglinne Worrell que, apanhado por uma leucemia, entregou a alma ao criador com apenas 42 anos, no dia 13 de Março de 1967.

Se calhar muita gente não sabe – e com toda a razão porque o críquete não é um jogo fácil de engolir – que estes três homens são nomes eternos do jogo. Eu também não sabia até desembarcar em Barbados e atirar-ma na procura do que tem este minúsculo país/ilha (431km2) de especial e que o faça ser diferente das centenas de ilhas espalhadas pelas Antilhas. Ambos os três, como dizia a velha laracha lisboeta, própria de revista do Parque Mayer, nasceram na paróquia de Saint Michael – a paróquia (parish) é uma forma de governo regional de Barbados baseada na velha conceção da Igreja de Inglaterra que vai, como podem imaginar, muito para além da sua mera função religiosa – a mesma paróquia da capital, Bridgetown, local que tem como ex-líbris o Farol dos Holandeses e, há cem anos, uma enorme bolsa de pobreza. Fosse verdade ou mentira, Walcott sempre afirmou que os três tinham vindo ao mundo graças aos esforços da mesma parteira. Cresceram nas ruas de uma aldeola que não tardaria a ser engolida por Bridgetown e despromovida a subúrbio. Chegaram ao topo quando a federação de críquete de Barbados resolveu construir um campo que – embora não esteja à altura do Kensington Oval (o maior recinto desportivo do país e que tirou o nome do mítico Kensington Oval de Londres) – foi batizado como Worrell, Weekes and Walcott ou Three Ws Oval, em Cave Hill, Campus da University of the West Indies. Tal como na Grande Ilha da qual foi colónia, Barbados oferece o título de Sir às suas figuras mais prestigiadas. Os Three Ws foram Three Sirs.

Uma velha história

Nem sempre é possível perceber o inglês falado na zona das Antilhas à primeira. Um sotaque terrível, palavras em francês pelo meio, o autêntico pidgin english que os ingleses, sempre muito parcimoniosos, trataram de renomear como business english, uma espécie de língua franca que cada um usa para se desenrascar. E não pensem que na escrita o fenómeno desaparece. Reparem neste pedacinho de letra de uma música que contém frases do inglês clássico e do inglês que se fala por aqui: «My Time is short and my journey long/Gimmuh something and lemmuh guh long!». Gimmuh para give me e lemmuh guh para let me go é o suficiente para termos de estar sempre com o ouvido alerta. Hoje o céu deu-se à chuva como se quisesse castigar a indolência dos turistas na sua maioria gordos e avermelhados, algo que não esconde a sua origem britânica, que se instalam nas esplanadas ou nas praias contíguas dos hotéis Hilton, Blue Orchids, Southern Palms e por aí adiante, os mais chiques já que ficam precisamente na orla do mar límpido tão caribenho como nenhum outro há igual.

A história do críquete é muito antiga em Barbados. E rica. Eles dizem: «It’s in our blood!». Um livro muito interessante escrito por um tobaguenho, professor e filósofo, C.L.R. James, dedica um capítulo ao críquete e considera que o jogo é a maior fonte de ligação entre os que falam inglês em todas as ilhas do Caribe. Mais ainda do que a Igreja Anglicana.

O desporto ganhou uma forte popularidade aqui em Barbados entre 1870 e 1900. Segundo um memorandum escolar assinado pelo professor Keith Sandiford, «é uma formidável ferramenta para formar o carácter dos jovens estudantes!». E assim, foram os colégios ingleses instalados na ilha, Harrison College e The Lodge School que tomaram a dianteira, logo seguidos pelas escolas públicas que começaram a considerar nos seus estatutos a prática desportiva e nela sobressaindo o críquete. O país terá dado conta da forma como adorava esta modalidade e o seus principais praticantes quando, em 1947, morreu o batsman George Challenor, a primeira grande vedeta com dimensão internacional. «Viverá para sempre na nossa memória colectiva!», está escrito no seu túmulo. Um grande salto para o sentimento de Barbados como pátria, embora a independência só tenha chegado nove anos mais tarde. A verdade é que Challenor era visto como um filho da ilha e o Kensington Oval não tardou a dar o seu nome a uma das bancadas.

Os primeiros clubes a serem fundados foram o Wanderers (1877) – clube dos proprietários de plantações e dos advogados -, seguido do Pickwick, apoiado pela grande maioria da classe média. E, sem mais adversários contra os quais disputar partidas, estes clubes entretinham-se a convidar os universitários e um grupo de militares da guarnição inglesa implantada na ilha para, se podemos pôr as coisas nestes termos, irem desentorpecendo as pernas. Ah! E a despeito de estarem sediados nas Caraíbas nenhum deles tinhas jogadores que não fossem de raça branca. O assunto viria a dar pano para mangas, mas já lá vamos.

Contra o racismo!

A necessidade de organizar uma competição que se visse levou ao aparecimento do organismo indicado para o serviço: o Barbados Cricket Club Comitee, fundado em 1892. Curiosamente, pela mesma altura surgiram os clubes representativos dos trabalhadores das diversas plantações, como foram os casos do Leeward, do Windward e do Spartan, o primeiro a não ser exclusivamente de brancos, comandado pela classe média local e com um campo próprio, em Belleville, arredores de Bridgetown. Vinham aí problemas e ninguém seria capaz de os deter por mais que os cheirassem à distância.

Como muitos poucos jogadores mulatos ou negros tinham autorização federativa para entrarem em campo, mesmo no Spartan, apareceu o revolucionário Empire. O nome até parece ser de uma arrogância tipicamente britânica mas, sob a liderança de Chris Braithwaite, orgulhoso jogador cuja pele era do tom da baquelite, tratou de abalar até aos alicerces essa ideia racista e colonialista de que o críquete estava destinado a ser praticado apenas pelos colonos, branquelas como só um fulano de chapéu de coco, guarda-chuva e The Times debaixo do braço, percorrendo Saville Road, pode ser. Chamaram-lhes os Progressistas. Eram do bairro de Bank Hall, o Empire Sports Ground ainda existe erguido como se fosse uma rotunda mas em quadrado formado por quatro faces da Pavillion Road. Isto passou-se em 1915. Por isso há que dar um salto no tempo e percebermos como o aparecimento de uma competição oficial, a Barbados Cricket League, mudou a face do desporto nesta pequenina ilha, a mais ao sul de todas as ilhas das Caraíbas.

Tomada do poder

Diz o povinho português, de Duas Igrejas às Minas da Panasqueira, que mordidela de cão se cura com pelo de cão. Provavelmente o autor do dichote sabia zero de medicina. Mas a frase estabeleceu-se. Em 1930, a Barbados Cricket League respondeu ao racismo com racismo. Só jogavam clubes formados por negros ou mestiços. Surgiram novos clubes – Police, Carlton, YMPC – o Cricket Club Commitee deu lugar à Barbados Cricket Association, as competições alargaram-se de tal forma que não tardaram a existir três divisões.

Brigdetown é uma cidade pequena e relativamente fácil lidar, de Brighton, Black Rock e Paradise Beach, mais a norte, a Clapham e Saint Lawrence, no sul. De repente, o céu azul-cobalto mudou para cinzento-grisalho. A chuva há de vir em gotas grossas durante uns minutos e partir depois para desaguar no horizonte do mar. Se há assunto em relação ao  qual as gentes de Barbados está de acordo, aproximando-se de um verdadeiro clímax nacionalista, é o do críquete.

Aqui entra outra faceta do local do jogo – as Windies, ou Seleção das Índias Ocidentais. Surgiu em 1890. As regiões e ilhas do Caribe que falavam inglês, na sua maioria colónias inglesas, formaram um conjunto para defrontar a seleção da Inglaterra que se deslocara às Américas para uma digressão. Eram, ao tempo, tão fortes as ligações entre determinadas ilhas que a solução de juntar os melhores jogadores de cada uma pareceu fazer todo o sentido, evitando que os ingleses andassem a saltitar de ilha em ilha, até porque são às centenas. Pareceu fazer todo o sentido e fez. De tal ordem que as West Indies ainda hoje é a seleção que representa as Caraíbas nas grandes competições internacionais e já foi campeã do mundo por duas vezes, em 1975 e 1979. E, ainda por cima, também aumentou o orgulho dos barbadianos nos seus representantes, sobretudo em momentos nos quais, dominando por completo a cena continental, conseguiam meter seis e sete jogadores no onze das Windies.

Nomes ficaram marcados para sempre na memória dos habitantes da ilha: John Goddard, Denis Atkinson, Tony Cozier (que se veio a tornar num dos mais famosos comentadores televisivos) e, acima de todos Sir Frank Warrell, conhecido pelo Capitão do Povo. Percy Goodman, por seu lado, foi o primeiro batsman de Barbados a pôr o nome do país no mapa internacional. Tendo chegado à seleção aos 16 anos, instalou-se em Inglaterra de 1900 a 1906, servindo para que muitas portas se viessem a abrir aos seus companheiros das Antilhas. Outro dos que esteve à sua altura, e no mesmo período de tempo, foi George Challenor que desembarcou em Southampton com apenas 17 anos e ficou entre os ingleses até 1928.

Devia fazer intervalos na escrita de cada vez que cai uma tromba de água. É impressionante a forma telúrica como o solo e as árvores se combinam para fazer frente à chuva e ao vento. O espetáculo é formidável e transmite-nos a verdade sobre as forças que se digladiam na natureza. Numa ilha minúscula, os elementos escolhem de que lado ficar. Hoje a batalha é curta mas, há dois dias, durou uma noite inteira e fiquei a ouvir as bátegas a tamborilarem nas gelosias, as fruta-pão a tombarem das árvores em baques surdos e o silêncio atemorizados dos sapos que agora coaxam alegre e sonoramente com o regresso da paz.

Muito tempo se passou desde que, num final de tarde de 1780, um grupo de escravos se juntou para jogar pela primeira vez críquete no solo de Barbados. Muito tempo passou desde que, em Fevereiro de 1865, naquele que ficou conhecido pelo Primeiro Grande Encontro Internacional de Críquete das Caraíbas frente a Demerara (atualmente Guiana) na Garrison Savannah, um espaço que fica nos contrafortes de Bridgetown e que também era utilizado para corridas de cavalos. Barbados venceu pela diferença de 138 runs. No jogo de resposta, em Georgetown, seria batido por dois wickets. Também já passou muito tempo desde que Arthur Priestley reuniu a primeira seleção das Índias Ocidentais que, em 1897, demandou a Inglaterra numa digressão. H.Hargreaves, um dos poetas barbadianos, escreveu uma ode de amor à sua ilha: «Join us in our worship, sing a joyous song/Clasp our hands together and my world can not go wrong/And when you leave, if leave you must, take with you my prayer/That your travels may be peaceful and free from worldly care/And that one day you will come again to greet me as a friend/Then my island will embrace you and hold you till the end». O poema tem como título A Fala de um Bajan. Bajan é a língua crioula que se usa em Barbados. Bajan também pode significar alguém natural de Barbados. E nessa ilha que te abraça como nas palavras de Hargreaves podemos sentir-nos em casa. Porque é um dos lugares mais pacíficos da Terra até em noites em que os trovões e os relâmpagos nos oferecem a imagem única de uma tempestade tropical.