Birkenau. Cicatrizes que falam

A vida e a morte de dois jogadores mortos pelo regime nazi, Julius Hirsch e Mathias Sindelar. Vítimas da vontade de serem livres.

AUSCHWITZ-BIRKENAU – Na nossa memória, onde nada prescreve, Auschwitz e Birkenau misturam-se tão facilmente quanto na geografia. Viajo de Cracóvia para sudoeste, para Óswiecim, na Baixa Polónia, 60 quilómetros de comboio para desaguar na velha cidade da Galícia e Lodomeria, um protetorado do Império Austro-Húngaro, e pelo meio dos bosques de abetos rodeando bairros periféricos: Monowice, Ralko e Brzezinka. Óswiecim que os alemães chamaram de Auschwitz; Brzezinka que chamaram de Birkenau – a Floresta de Bétulas. A pequena aldeia foi arrasada. Construiu-se por sobre as ruínas o Complexo Auschwitz-Birkenau II, destinado ao extermínio. Tadeusz Borowski, um dos sobreviventes de Brzezinka, contou um dia: «Between two throw-ins in a soccer game, right behind my back, three thousand people had been put to death». Em Birkenau havia futebol antes da morte…

Julius Hirsch teve uma data oficial de nascimento: 7 de abril de 1872. E local: Achern. Da morte só há suposições: declarado como morto no dia 8 de maio de 1945, em Auschwitz-Birkenau. Sobre o retângulo do jogo era conhecido por Jüller. Um fulano magrinho, o Wunderkind, Rapaz-Maravilha, esquerdino de pontapé subitâneo, campeão pelo Karksruher, primeiro judeu a vestir a camisola da seleção alemã, juntamente com Gottfried Füchs, soldado valente durante a IGrande Guerra, derramando sangue pela Alemanha, sua pátria. O irmão Leopold caiu sem vida nos campos da Flandres.Jüller recebeu a Cruz de Guerra. Mas não chegou a encará-la com orgulho.

Os nazis não quiseram saber de quem tinha sido Julius Hirsh. Era judeu e bastava. No dia 1 de março de 1943 deu entrada no campo de Auschwitz. Não se voltou a ouvir o seu nome. Uma comissão de guerra de um tribunal militar. criada em 1950 para o efeito, estabeleceu a data da sua morte. Nada sobraria das cinzas que subiam aos céus pelas chaminés dos fornos de Birkenau.

Privilégio

O futebol em Auschwitz-Birkenau era um privilégio. Só os soldados da Schutzstaffel (SS), ou seja, a Tropa de Proteção, e os guardas do campo estavam autorizados a participar nas pelejas mas, de quando em vez, um ou outro prisioneiro político que tivesse sido futebolista destacado de algum clube recebia autorização para entrar em campo.

A ideia destas espécies de campeonatos de futebol tinha nascido e sido alimentada em Buchenwald, um campo de concentração instalado na Turíngia, Leste da Alemanha. Mas rapidamente se espalhou por todos os outros campos como forma de manter a moral em alta e criar um saudável espírito competitivo. Como é evidente, a expressão saudável no IIIReich no final dos anos de 1930 e no início dos anos de 1940 era bastante dada a excessos.

Segundo o velho princípio alemão de que a nação se define pela língua e se deve considerar alemão todo aquele que fale alemão, no 13 de março de 1938, Hitler entrou enfunado em Viena, oficializando o Anschluss e, embora não fosse nenhum especial entusiasta por um jogo inventado por bretões e que deixava à evidência a sua forma muito antissocial de desenvolverem comportamentos públicos, transformava o maior futebolista do seu tempo numa das futuras estrelas cintilantes do firmamento da Maanschaft, a seleção da cruz gamada nazi: Mathias Sindelar. Ou pretendeu fazê-lo…
Die Papierene, o Homem-de-Papel, era 11 anos mais novo do que Julius Hirsch e já disputara os campeonatos do mundo de 1930 e de 1934 com a camisola da Áustria, a ‘Wunderteam’, a ‘Equipa-Maravilha’, como a alcunharam. Era de uma magreza extrema mas de uma habilidade formidável que lhe valeu ser igualmente conhecido como Mozart do Futebol, como sinal de respeito para com o virtuosismo que exibia com uma bola nos pés.

Adolf Hitler era uma alimária de 136 patas e não estava com paciência para rapapés de elegância diplomática a partir do momento em que o Estado austríaco não era mais do que uma simples província da grande Alemanha nazi. No dia 3 de abril, precisamente um mês após a anexação, fez questão de assistir ao Anschlussspiel, um encontro entre as seleções alemã e austríaca, um embate amigável entre dois teams irmãos que iriam, nesse verão, no Mundial marcado para França, atuar como um só, pois o conjunto nacional da Áustria seria dissolvido. 

Mathias Sindelar parecia feito de papel mas ninguém era capaz de lhe fazer um rasgão na consciência. Em compadrio com o seu companheiro de equipa, Karl Sesta, manteve os acontecimentos interessante e convenientemente equilibrados. Depois, a 15 minutos do fim daquela sinistra amostra de camaradagem sobre relva, ambos marcaram golos, deram à Áustria a vitória por 2-0 e comemoraram como se tivessem acabados de ter saídos vivos de uma câmara de gás. 

O bigodinho do Führer tremeu de indignação. Mathias não aceitou representar a Alemanha nazi nem voltou a jogar futebol. No dia 23 de janeiro de 1939 foi encontrado morto juntamente com a sua namorada, Camilla Castagnola, no apartamento que repartiam em Viena. O óbito detetou excesso de monóxido de carbono.

Friedrich Torberg, poeta e romancista vienense, acusou sempre a Gestapo da morte de Sindelar. Escreveu um poema: Gedicht vom Tode eines Fussballspielers – Balada Sobre a Morte de um Jogador de Futebol. «Das Tor, durch das er dann geschritten/Lag stumm und dunkel ganz und gar/Er war ein Kind aus Favoriten/und hieß Mattihas Sindelar».
O que, de uma penada, se pode traduzir como: «O portão pelo qual entrou/Era tão silencioso como escuro/Ele que era o filho dos favoritos/Chamava-se Mathias Sindelar». Ninguém amachucava o Homem-de-Papel.