Branko. “A música lusófona e Lisboa têm um espaço a ocupar no mundo”

Nem sempre são necessárias palavras para mudar o mundo. O que une a música do Séc. XXI é o ritmo e João Barbosa, o DJ e produtor Branko, persiste em pensar o irracional

O atlas de Branko está em pleno rodopio. Esta noite, os esqueletos abanam na primeira noite Na Surra – nascida dos ossos da Hard Ass, do Lux, e da De Surra, do Copenhagen – no B.Leza. De domingo para segunda às 00h45 estreará a série de oito episódios Club Atlas na RTP2. E na próxima semana, será revelado o vídeo de “MPTS”, o novo single produzido a quatro mãos com Pedro (ex-Kking Kkong). Pretexto(s) para carimbar o passaporte Europa fora, de novo, e para uma conversa que precede o contágio das pistas de dança por ritmos globais. Ou como o mundo pode ficar mais pequeno sem precisar de palavras.

O “Club Atlas” começa em Lisboa. Foi deliberado?

Sim, no fundo é um episódio zero. Quando fiz as webséries do meu álbum, fiquei com o bichinho de querer explicar isto a quem não entende nada de música. Era uma linguagem batida em blogues e em “Internetes” mas nunca tinha passado para este nível de entretenimento, genérico, televisivo e em canal aberto. Era possível mas não necessariamente simples. Precisava de um formato onde houvesse tanto de lifestyle, como eu a fazer coisas idiotas, e informação musical. Não podia ter estúdio, nem coisas desse género. Havia necessidade de um episódio onde apresento o formato, do que é que se vai falar e como. E em paralelo é um tributo, pela forma como começa e pelo poema do Nástio [Mosquito]. Tentei criar expectativas, para que depois de ir à Casa Cid às quatro da manhã, as pessoas pensam como é que vai ser em Cabo Verde ou em Lima. É um manual de instruções. 

Tens dito que Lisboa é uma capital transatlântica do eixo África-América do Sul-Europa.

Sim, se eu não fosse lisboeta iria a Lisboa fazer este programa. A cidade tem tudo o que é preciso. Nesse sentido, tenho o privilégio de o ponto de partida ser a minha casa. Existe uma renovação da identidade. Está tudo a abrir para uma série de coisas que foram a nossa linguagem nos últimos dez anos. Fazia todo o sentido ser Lisboa a abrir. 

Olha-se para Lisboa hoje como se olhava para as grandes metrópoles?

Sem dúvida. Um pouco como Londres. Uma cidade que cria géneros e faz acontecer. Já é possível olhar para dentro e sentir isso. Se calhar, o mundo era um bocadinho mais monocromático e a música chegava de dois/três pontos. Hoje não é assim. Houve uma contaminação saudável dos tops e dos sites de música. Lisboa está dentro dessa mudança.

Tiveste essa reação nas cidades visitadas na série?

Sim, ainda é um processo em afirmação. Os artistas já o sabem. Basta ver o senhor dos Moonspell a refilar com a afro-Lisboa para perceber isso. Sinto que está também a passar-se algo muito interessante: a cultura sempre esteve na origem de movimentos de massas. Em Nova Iorque, o Lower East Side era um gueto e passou a ser o metro quadrado mais caro do mundo, por causa das galerias de moda e das salas de espetáculo. As imobiliárias andam sempre atrás do acontecimento. Para haver tanto burburinho em Lisboa, é porque alguma coisa se passa. Até que toda a gente tem que ir para outro sítio porque fica tudo impossível de caro. É o preço a pagar. 

Pode falar-se num choque cultural? O rock foi a música do Séc. XX mas é seguro dizer ao fim de 17 anos de Séc. XXI não o é. Por outro lado, o hip-hop é a música mais ouvida e assiste-se ao contágio de ritmos exteriores ao império anglo-saxónico. 

Sim, é uma adaptação dos tempos e, a meu ver, explica-se pela velocidade que as coisas ganharam. O do-it-yourself é um conceito-chave.

O punk que está para além da música.

Exato, o punk é o início destas cenas apesar de, sonicamente, não haver essa identificação. Dantes, havia o peso da banda, do estúdio e da promoção. A indústria musical reservava-se esse poder e gerava muito dinheiro. Vendiam-se muitos discos, muitas digressões, muitas T-shirts…Hoje em dia não. A democracia cultural e artística. Se fizer um beat melhor, vou ter mais pessoas a gostar, ou a fazer like numa foto. Isso trouxe uma afirmação de identidade muito bonita para os artistas. É confiar no público, em vez de lhe passar um atestado de parvoíce. É passar a informação e cada um escolher o que quer. 

Construir um pensamento sobre a música.

Exato. 

E o ritmo é o que une o que pode estar dissociado. 

Nem mais. Há um momento muito interessante no episódio de Acra em que fui falar com um jornalista chamado John Collins. Há um género chamado High Life que nasceu nos anos 20 e acabou por contaminar a música tradicional com guitarras elétricas. A determinada altura, essa música era inspirada pela ‘soul’ do James Brown mas ele acabou por ir tocar a Lagos (Nigéria) e ao fazer uma digressão pela Costa Oeste de África, influenciou aqueles que o tinham influenciado. Criou-se um vórtex de espaço/tempo muito engraçado, ainda nos anos 50, e a forma como esse cria uma base cultural, às tantas já não se sabe o que é que é de onde. E é preciso. Quando abro uma revista de música de dança, não gosto só de ver fotos de Ibiza e miúdas com mamas giras. Quero saber também de onde vem o techno e o house. Porque é que aquilo vem de Detroit e Chicago. A história do movimento gay associado à música de dança. Tudo isso são histórias interessantes. 

Que ajudam a explicar movimentos e transformações sociais. 

Exato. E aplica-se a várias cidades. Um miúdo com um computador consegue ter uma voz audível e reinterpretar um ritmo com 70 anos. A riqueza está na mistura entre o tradicional e o futuro. 

No primeiro episódio, tens a preocupação de falar com o Rodrigo Leão, enquanto representante da banda portuguesa que mais vendeu (Madredeus), o Diogo Clemente, por ser o principal compositor e músico fadista do Séc. XXI, e o Tiago Pereira, por conservar a memória n’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. A intenção foi explicar o passado para compreender o presente?

Isso sou eu a tentar contar a história de forma abrangente. Tenho de perceber que não estou a falar para pessoas que leem blogues específicos. Essa foi uma das dificuldades. O guião foi quase sempre escrito pós. Houve sempre a preocupação de voltar atrás. Quase como um programa de culinária em que põe o assado e trinta minutos depois tiras. Podes continuar a contar a história a partir daí.

Por falar em culinária, parte das conversas são à mesa com comida no prato. É uma outra forma de simbolizar essa identidade e ligá-la com sensações universais?

Não consigo não fazer a ligação entre a beleza de um ceviche e de uma cumbia eletrónica. São relações parecidas. Essa foi uma das chaves para a série. Se as pessoas têm paciência para ouvir histórias sobre comida, não me lixem mas também têm para ouvir histórias sobre música. Acho é que ninguém as tinha contado. Um outro momento em que me apercebi que isto era possível foi há muito tempo quando os Buraka andavam a brincar com a kizomba – toda a gente batia na kizomba – e nós brincávamos com isso. Em discos, ninguém ligou nenhuma. Nada. Não havia uma voz crítica, porque as pessoas não se apercebiam que aquilo estava noutro contexto. Quando o Kalaf começou a escrever crónicas, a segunda ou terceira foi sobre esse tema. E teve muitas reações. Numa semana, a crónica teve mais impacto do que uma canção no nosso álbum. Então fixe, ninguém está errado aqui mas isto pode ter uma vida paralela. Nem tudo tem que ser um disco. E a minha ideia é fazer da Enchufada um centro de produção de conteúdos à volta da música de dança global para criar essa faísca social. 

Além de produzir música e passá-la em noites tuas ou festas da Enchufada, o que te move é uma missão?

É uma ideia de inovação. Há uma série de marcas identitárias na música lusófona e na cidade de Lisboa que têm um espaço a ocupar no mundo. Acredito que esse caminho tem de ser imposto. Mesmo como produtor, a lusofonia está sempre presente.