Calamidade não serve para isto

Constitucionalistas consideram que estado de calamidade pública pode ser insuficiente e que a o estado de emergência deveria ter-se mantido embora numa fórmula mais ‘atenuada’.

O Conselho de Ministros aprovou ontem o estado de calamidade pública, que vai entrar em vigor na segunda-feira, 3 de maio. Mas, ao longo da semana, os constitucionalistas levantaram dúvidas sobre a possibilidade de manter ou aplicar algumas restrições após o fim do estado de emergência.

«Se forem adotadas medidas que envolvam de qualquer forma suspensão ou restrição de direitos seria  mais claro, mais nítido, mais razoável, mais sensato, mais franco, manter o estado de emergência, embora atenuado relativamente às medidas que foram adotadas no último mês», disse ao SOL o contitucionalista Jorge Miranda antes de António Costa anunciar o plano de retoma.

Por muitos considerado um dos ‘pais’ da Constituição, Miranda é peremptório na afirmação de que «o estado de calamidade não existe» para este efeito e, tratando-se de condicionar direitos das pessoas, «seria mais razoável prolongar o estado de emergência por mais 15 dias».

Também Alexandre Sousa Pinheiro levanta reservas à decisão do Governo, afirmando ao SOL que a suspensão de direitos não pode acontecer em qualquer estado de limitação, ou seja, segundo a Constituição, a «suspensão do exercício de direitos» é possível apenas quando o estado de emergência ou estado de sítio está em vigor. «Um estado de calamidade pública não tem essa previsão na Constituição, portanto, as regras de suspensão não são aplicáveis no regime de calamidade pública», garante o constitucionalista.

 

‘O problema é real’

Para Vital Moreira, a ‘distinção-chave’ é feita entre «a restrição do exercício e a suspensão do exercício» – distinção esta que, segundo o que escreveu no seu blog, «pode não ser fácil de fazer em situações-limite». «Nesse caso, o mais aconselhável é renunciar a tais restrições ou então repetir o estado de emergência», escreve o constitucionalista.

Para Pedro Melo, «não há dúvida»  de que, no caso de continuarem a ser aplicadas restrições como, por exemplo, o dever de confinamento, a melhor opção teria sido prolongar o estado de emergência. «A forma mais segura, do ponto de vista jurídico-constitucional que o Estado tinha de manter este tipo de restrições, embora atenuadas, seria renovando o estado de emergência»,  explica ao SOL o constitucionalista. «O estado de calamidade pública foi concebido, normalmente, para situações relacionadas com a proteção civil», defende, dando o exemplo de sismos, inundações ou fenómenos naturais que ponham em causa a vida das pessoas: «Normalmente, estão mais circunscritos a áreas geográficas e não tanto ao país inteiro».

Curiosamente, esta semana, durante uma visita ao norte do país, António Costa sublinhou que também era jurista e que sabia da «capacidade enorme que os juristas têm para inventar problemas». Ao SOL, Alexandre Sousa Pinheiro afirma que, «neste caso em concreto, o problema é real», não se tratando de um «capricho académico de alguns». «Trata-se de uma situação em que é preciso interpretar a lei», explica o constitucionalista, garantindo que o resultado dessa interpretação é uma diferença ‘clara’ entre estado de emergência e estado de calamidade.

A entrada em vigor do estado de calamidade pode, segundo Pedro Melo, «suscitar alguns problemas». Na prática, diz, se as autoridades «mandarem parar e regressar a casa» e, face ao não cumprimento, uma pessoa for detida, poderá sempre ser invocada a inconstitucionalidade da medida: «Poderá dizer que a restrição que lhe foi imposta é uma restrição inconstitucional porque tem na base um estado de calamidade pública e essa calamidade pública não é suficiente para o impedir de circular».