Caramulo

A nossa vida é feita de múltiplas recordações. E neste nosso regresso à lareira há recordações de infância que se agarram à memória e que nos fazem revisitar momentos de afeto que não podemos jamais esquecer. Como recordamos outros ‘terrorismos’ que nos abalavam e condicionavam, como os do IRA, da ETA ou do ‘Setembro Negro’.

Há muitos anos, ainda tinha algum cabelo, visitei o Museu do Caramulo – que é, ainda hoje (e ao mesmo tempo), Museu de Arte e Museu do Automóvel. 

Visitei-o incógnito, para rever um bonito e singular conjunto de bengalas que a minha Família lhe doara, evidenciando a sua generosidade e a sua ligação ao torrão beirão. Nessa visita constatei  o esmerado cuidado que elas merecem ao Museu, apesar dos parcos recursos da sua direção.

Este museu é uma peça de um ‘todo’. Integra a denominada Estância Sanatorial do Caramulo, fundada em 1920 e que nos anos 40 e 50 do século passado era um «lugar ímpar no tratamento da tuberculose pulmonar» em Portugal e captava, ainda, muitos europeus.

O meu regresso ‘às bengalas’   – eu que recebi, há bem pouco tempo, as duas únicas que permaneceram na Família após aquela doação – leva-me, por justiça, a evidenciar o trabalho notável de Jerónimo Lacerda e dos seus herdeiros na construção de um ‘nicho de excelência’ – na linguagem contemporânea – quase no topo da designada Serra de ‘Alcoba’. Ou seja, na cúpula de uma serra que abarca quatro concelhos: Tondela, Vouzela, Oliveira de Frades e Águeda. Mas com Tondela a ser ‘o centro’ e o amparo.

Para mim o ‘Caramulinho’ – o ponto mais alto da serra – era uma visão diária. Da varanda da casa de meus queridos e saudosos Pais, ali à Meia Laranja em Viseu, o Caramulo era o ‘infinito próximo’. 

O Sol ‘punha-se’, por vezes com um ardente fogo, mesmo ali na serra. E caía lentamente como que nos obrigando a dizer-lhe, com toda a calma, ‘Adeus!’ 

O nevoeiro, por vezes, apagava o topo da serra. E dali a vista agarrava o vasto planalto da Beira Alta e levava-nos a descobrir, nas curvas tantas vezes ultrapassadas, os vales do Mondego e do Dão, do Pavia e do Cris. 

E cada ‘mar de nuvens’ era, de verdade, um imenso oceano. Tal como cada dia de sol intenso e sem vento era, como bem escreve António José Veloso num sugestivo e interessante livro acerca da estância, «uma pintura aguarelada na qual sobressaem os rastos de fumo saídos das chaminés e os ténues traços de neblina que se evapora dos cursos de água que atravessam o planalto beirão».

Trago-lhes hoje este traço de um regresso à lareira, sem esquecer a dor que atinge Londres em mais um ataque que abala a Europa. Ou a primavera gelada que nos atinge. Ou a consciência real do fim da ‘utopia nórdica’. Ou ainda esta ‘silicolonização do mundo’ que nos ameaça e verdadeiramente condiciona. 

E é este modelo organizacional que se está a instalar – e a instaurar –, fundado numa quase que organização algorítmica da sociedade, que nos leva, em vários momentos do dia e da vida, a um regresso à lareira. 

Sem nacos de saudade. 

Mas com a consciência, sempre – na linha das reflexões de Éric Salin –, da urgência e permanência do respeito pela dignidade e pela integridade humanas. 

A dignidade que se buscava, em termos de saúde, na Estância Sanatorial do Caramulo. Que importa revisitar e cujo Museu merece uma cuidada visita. 

Merece mesmo, acreditem! 

Com a consciência de que os edifícios silenciosos de hoje albergam uma história rica e, também, ‘lindas estórias’. De amor e de vida! Desta vida! hoje se resolvem