Cartas abertas…

A moda está a pegar. Depois da sétima carta aberta de Sócrates, a partir da cadeia de Évora, agora foi a vez de António Costa adoptar a via epistolar, desdobrada em vários capítulos, para se dirigir ao eleitorado indeciso, com “o empenho em explicar” como “virar a página da austeridade para relançar a economia”.

É um guião já conhecido do tempo em que ficou deslumbrado com Tsipras e a vitória do Syriza. Porém, mesmo na Grécia, trata-se de uma bandeira desbotada, em nome do realismo necessário ao terceiro resgate.

A História costuma ser caprichosa. O PS está a senti-lo e não o esconde. Percebem-se as linhas de fractura. À medida que se esbatem as certezas à volta de António Costa, José Sócrates é um sarilho que semeia muitos receios com as eleições à porta.

Um ex-líder socialista e ex-primeiro-ministro preso, há mais de nove meses, é uma singularidade fora dos compêndios partidários. Mas corre o risco de ficar subalternizado na memória colectiva.

Depois, a unanimidade verificada em todos os tribunais superiores, ao indeferirem os mais variados recursos, é um sério revés para a defesa, que não ajuda a corrigir a ideia negativa que tem alastrado na opinião pública.

O último desaire – assinado pelos juízes do Tribunal Constitucional -, está vertido no acórdão que não encontrou inconstitucionalidades na forma como foram interpretados vários artigos do Código de Processo Penal pelos desembargadores da Relação de Lisboa.

Para salvar a honra do convento – e o papel que tem assumido entre os oficiantes -, o advogado João Araújo anunciou que iria prosseguir para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, esgotadas as vias de recurso internas. É outro degrau com destino incerto.

O mais insólito, contudo, nem são os esforços da defesa para libertar o seu cliente – recorrendo a todos os instrumentos jurídicos ao seu alcance -, mas  a  inesperada  revelação, surgida após a venda do apartamento do Marquês do ex-primeiro-ministro.

Segundo João Araújo, o produto da transacção destina-se, em parte, a amortizar os alegados  empréstimos  do  amigo  de Sócrates, também detido. O problema, porém, é que “ainda não sabe qual o montante em dívida”.

E o causídico confessa ao insuspeito JN, com soberba naturalidade, que “estamos a determinar com o engenheiro Sócrates o valor exacto que lhe foi emprestado”. Pasme-se.

O ‘livro de fiados’, pelos vistos, só agora começou a ser um motivo de conversa, entre o político preso e seu advogado.

Antes, Sócrates não hesitou em elevar a fasquia, promovendo o Ministério Público a bête noire, ao qual atribui estranhos desígnios, enquanto descortina no processo, “como verdadeira motivação, condicionar as próximas eleições e impedir a vitória do PS”. Nem mais.

Num recente trabalho publicado pelo Expresso, o seu autor teve a paciência de inventariar as doze intervenções de Sócrates, desde que se encontra detido, por entre cartas, entrevistas e outras declarações avulsas. Há um fio condutor óbvio.

Logo na primeira, proclamava não ter dúvidas de que “que este caso tem também contornos políticos”, embora escrevesse, condescendente, que “qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o Partido e prejudicaria a Democracia”. António Costa fez-lhe a vontade.

Na última missiva – com honras de página inteira do JN -, Sócrates  manteve-se  fiel  à  interpretação inicial, ao puxar a Justiça para o terreno político e ao desacreditar a investigação. Mas viu-se forçado a admitir que “a investigação está ainda dentro do prazo para deduzir a sua acusação”. 

Vivemos tempos estranhos. No Brasil, o ex-Presidente Lula da Silva – outro amigo de Sócrates, que veio a Portugal apresentar-lhe o livro com a tese parisiense -, passa, também, um mau bocado, ao lado de Dilma, eleita com o seu apoio, que tem visto a popularidade definhar.

A operação ‘Lava Jato’, desencadeada pela Justiça brasileira, não tem dado sossego a ambos, na ressaca de um dos maiores escândalos de corrupção de que há memória naquele país.

Lá  como  cá,  o  que  está  em causa é o escrutínio de comportamentos suspeitos atribuídos a actores políticos. Mas não basta aos investigadores apontarem a dedo os indícios. Terão de fazer prova consistente em tribunal.

No recolhimento da sua cela, Sócrates dá corda aos sapatos do ‘preso  político’,  e  afina  a  estratégia de vitimização – na qual é perito. Veste-se de acusador e não poupa o Ministério Público nem  o  juiz  de  instrução,  colando  a  investigação  a  cálculos eleitorais.

É um erro que recai sobre o PS e a liderança de António Costa, a quem nunca se ouviu uma crítica à desgovernação socialista que conduziu o país ao limiar da bancarrota. Bem podia ter aproveitado uma das cartas para se distanciar e pedir desculpa…