Coroa de Espinhos do rei Juan Carlos

Chegou ao poder em 1975 com o rótulo de Príncipe de Franco, mas ao travar um golpe de Estado consolidou a democracia no país e ganhou credibilidade dentro e fora de Espanha. Hoje com 74 anos, o Rei Juan Carlos esteve debaixo de fogo por causa de uma polémica caçada a elefantes e de um longo…

curta e grossa, a mensagem ecoa do chile: «o novo rei da selva afina a espingarda com uma princesa alemã, caça elefantes e põe os cornos à rainha». mais acima, no méxico, abre-se espaço à divulgação de um jocoso prémio honorário infiel para toda a vida, atribuído pela ashley madison, comunidade online reservada a casados em busca de relações extraconjugais. as referências vêm das edições online do jornal chileno la cuarta e do mexicano la crónica de hoy.

o visado da história revela-se na figura do rei de espanha. antes intocável na sua aura de salvador da democracia hispânica, agora, com 74 anos, alvo frequente de remoques mediáticos.

«subitamente, d. juan carlos tornou-se visivelmente real, corpóreo, humano e, portanto, sujeito à crítica como os demais», comenta josé luis ledesma vera, um dos historiadores que, nos últimos dias, se debruçaram sobre a quebra de confiança dos espanhóis no seu monarca. por um lado descredibilizado por sucessivas notícias de caçadas a espécies protegidas – numa fidelidade armada que parece ter apagado o trauma da morte a tiro do irmão alfonso – e por outro lado acossado pelo longo historial de infidelidades matrimoniais, hoje encurtado ao boato de um romance de seis anos com a germânica corinne zu sayn-wittgenstein.

a metamorfose do rei aos olhos do povo acentua-se desde 2007, ano marcado pelo intempestivo «por que no te callas?» de agravo a hugo chávez, e por uma demonstração de força inédita em mais de três décadas de reinado: o palácio de zarzuela ordenou a retirada de uma edição da revista jueves. motivo? uma sátira sexual protagonizada pelos príncipes das astúrias, felipe e letízia.

o episódio, ruidosamente contestado como um atentado à liberdade de expressão, devolveu à memória do país uma velha ligação que a democracia se encarregou de mitigar: a de juan carlos com o ditador francisco franco.

apadrinhado pelo caudilho ainda na infância, juanito – tratamento que o diferenciava do pai, também juan – foi confiado aos cuidados do general enquanto a família permanecia exilada no estoril.

«tinham uma relação de respeito, gratidão, obediência militar e afecto», descreve pilar urbano, autora de o_preço do trono, uma das inúmeras biografias que, já neste século, começaram a desfiar as aventuras por detrás da história do rei de espanha, inaugurada a 5 de janeiro de 1938.

«a pobre criatura nascera um mês adiantado e tinha os olhos esbugalhados. era feio como o pecado! horrível. mas, graças a deus lá se alindou».

o milagre estético narra-se pelas palavras do historiador paul preston em juan carlos – biografia e, contam os anais da realeza, reproduz o alívio da mãe, anos após o nascimento do seu primeiro varão, em roma.

afastado dos irmãos aos oito anos e levado para a escola aos empurrões

baptizado juan carlos alfonso víctor maría de borbón y borbón, e educado entre a itália, a suíça, portugal e mais do que uma morada em espanha, cedo juanito amargou as exigências dinásticas.

afastado dos três irmãos logo aos oito anos, partiu para o colégio saint jean, de friburgo, para onde, de tão contrariado «teve de ser levado aos empurrões» no primeiro dia de aulas. ainda na suíça, o príncipe herdeiro teve de enfrentar sozinho uma complicada cirurgia aos ouvidos que o deixou com «problemas de audição para toda a vida».

os episódios destapam-se ao longo das mais de 250 páginas de segredos e mentiras da família real espanhola, livro assinado pela jornalista pilar eyre, que mais recentemente lançou também a solidão da rainha.

fiel ao título, a obra apresenta sofia da grécia como «a mulher mais sozinha de espanha» e insiste numa tese há muito propagandeada: os reis mantêm um casamento de fachada desde 1976. o distanciamento do casal, unido em 1962, cerrou-se a partir da descoberta de uma traição. a frieza arrepiante com que juan carlos define a mulher sobressai: «é uma grande profissional», limitou-se a declarar o rei, nas memórias que ditou ao já falecido josé luís vilallonga.

a imagem de uma rainha de postura irrepreensível, capaz de sacrificar a felicidade em nome da dinastia, estende-se ao retrato traçado nas páginas da revista point de vue.

fraco da cabeça, forte no olfacto político

«sofia tem entusiasmo pelo seu cargo», sentenciou esta publicação especializada em assuntos da realeza, peremptória também em distanciá-la dos atributos do marido, reconhecido pela maior facilidade de criar empatia.

conta-se mesmo que juan carlos nunca se poupou a caricaturas para demonstrar os seus pontos de vista. «aqui não tenho grande coisa», habituou-se a dizer com os dedos apontados à cabeça, para logo de seguida se agarrar ao nariz: «aqui, sim, tenho muito».

o olfacto político do rei, segundo reza a história, foi determinante para travar a derrocada da democracia espanhola, ameaçada por uma tentativa de golpe de estado, contida a 23 de fevereiro de 1981 pela pronta acção do monarca.

fardado com o uniforme de capitão general dos três ramos das forças armadas – reflexo da formação na marinha, na força aérea e no exército – juan carlos irrompeu nos ecrãs de televisão na madrugada de 24 de fevereiro para declarar o seu respeito pelos valores da liberdade.

«o rei não pode tolerar, de forma alguma, acções ou atitudes de pessoas que pretendam, pela força internacional, romper o processo democrático iniciado com a aprovação da constituição pelo povo espanhol».

além de silenciar as pretensões dos militares, que o queriam colar a práticas absolutistas, o monarca libertou-se do rótulo de ‘príncipe de franco’.

não apenas aos olhos da nação, mas também a nível internacional, num apoio global bem vincado nas palavras do antigo líder comunista espanhol santiago carrillo solares. «que deus conserve o rei. hoje somos todos monárquicos», enalteceu o mesmo dirigente que, anos antes, atribuíra a juan carlos o cognome de ‘o breve’.

as primeiras profecias da desgraça ‘juancarlista’ ouviram-se, contudo, da boca do seu próprio pai, até à morte consumido pelo afastamento da coroa.

«eu não serei rei, mas tu muito menos», declarou um agastado conde de barcelona. reagia assim à notícia da nomeação do filho como sucessor de franco. anunciada em 1969 e concretizada após a morte do general em 1975, não contou com a presença de nenhum familiar directo do futuro rei, facto que, apontam várias biografias, ditou a ruptura da rainha sofia com as suas cunhadas.

«as infantas foram muito duras com o irmão, mas juan carlos desculpa-as porque tratava-se de serem fiéis ao pai. mas d. sofia nunca lhes perdoará», lê-se em segredos e mentiras da família real espanhola, onde se discorre também sobre o eclipse da realeza além da zarzuela.

«entre os jornalistas há um acordo não escrito, como sucede com tudo o que respeita à família real: não se deve dar demasiada atenção às irmãs de juan carlos».

a indicação de ignorar margarida e pilar – esta última primogénita da família e enfermeira premiada a quem sempre se atribuiu estofo de liderança – estende-se ao silêncio decretado sobre o acidente que vitimou alfonso, o irmão mais novo do rei. apesar de a versão oficial atestar que o infante, na altura com 14 anos, disparou acidentalmente sobre si próprio, sobram os relatos que colocam juan carlos a pressionar o gatilho, reforçados por um grito de desespero parental. «jura que não fizeste de propósito». juanito cumpriu o juramento por mais de uma vez, e meses depois de um pranto de perda, conta-se que fundiu a sua personalidade com o carácter de alfonso. ainda hoje recordado como um mulherengo e conquistador nato.

paula.cardoso@sol.pt