Cortes assustam quem precisa de um transplante

Pedro, Alcina e Paula precisam de um órgão novo para voltarem a ter uma vida normal. Os cortes anunciados pelo ministro da Saúde deixaram-nos em choque. Receiam que o número de colheitas e cirurgias caia, a lista de espera aumente, e os doentes fiquem sem alternativas.

alcina ascensão já não tem forças para abrir uma garrafa de água. «em casa arranjei um truque: uso uma chave inglesa para me ajudar a tirar a tampa». os braços estão magoados de anos e anos de hemodiálise, que tem de fazer três vezes por semana porque os rins deixaram de funcionar. durante esses dias está quatro horas ligada a uma máquina que lhe filtra o sangue. tem 67 anos e há mais de dois que espera um transplante. «estou no fim da linha. dentro de algum tempo o meu estado de saúde não me permitirá ser transplantada».

ficou, por isso, em choque ao ouvir o ministro da saúde, paulo macedo, admitir à tvi uma redução do número de transplantes em consequência dos cortes nos incentivos aos hospitais, obtendo uma poupança de 15 milhões de euros. «oxalá nunca pague na vida o que disse, oxalá que nunca ele ou alguém da sua família precisem de um transplante para sobreviverem».

as polémicas declarações do ministro e a redução para metade dos incentivos dados aos hospitais que fazem colheitas de órgãos e cirurgias desencadearam uma onda de críticas de doentes e especialistas e levaram o presidente e a coordenadora da autoridade dos serviços do sangue e da transplantação a demitirem-se.

paulo macedo emendou a mão na assembleia da república, na terça-feira da semana passada: «não há qualquer intenção de diminuir o número de transplantes, é uma área importante em que alcançámos patamares relevantes». e disse ter garantias dos dois principais centros de que os cortes «não põem minimamente em causa» o número de cirurgias, que colocaram portugal na liderança do transplante renal e hepático.

alcina ascensão sabe como o país evoluiu. fez o primeiro transplante em 1984, mas o rim nunca funcionou. quatro anos depois, fez a segunda cirurgia: «a minha vida mudou radicalmente. podia fazer coisas tão simples como beber toda a água que me apetecia, porque o rim funcionava. podia viajar ou trabalhar sem estar presa à diálise».

o rim aguentou 19 anos sem problemas. depois parou de funcionar. agora, alcina voltou à lista de espera, juntando-se aos mais de 2.300 portugueses que aguardam um transplante renal para sobreviver.

«cortar nos incentivos nesta área não faz sentido. um doente transplantado sai muito mais barato ao estado do que um doente que tem de fazer diálise durante anos», alega carlos silva, presidente da associação portuguesa de insuficientes renais (apir). «há um estudo que mostra que, num ano, o doente em diálise paga o transplante». a operação custa 27 mil euros, excluindo os incentivos.

mais do que de poupança, carlos prefere falar da revolução que a cirurgia traz à vida dos doentes. «a diálise é uma prisão. impede-nos, em muitos casos, de ter uma vida profissional, uma vida social como os outros. antes do meu primeiro transplante, vivia fechado em casa. tinha vergonha de sair», conta.

recebeu um novo rim aos 29 anos. continuou a trabalhar nos caminhos de ferro, em leiria, casou e teve um filho. «era como ter estado morto e acordar para a vida».

por isso, receia que a decisão do ministro da saúde de cortar para metade os incentivos para a realização destas cirurgias faça cair o número de transplantes no país – que no ano passado quase chegou aos 900.

no caso dos rins, as unidades vão receber 6.239 euros por cirurgia em vez dos anteriores 12.469. por isso, o responsável teme que os 570 transplantes renais de 2010 não se repitam. «este ano, o hospital de santa maria já fez muito menos colheitas de órgãos. não sei como será em 2012», diz carlos silva.

na semana passada, o ministro tentou explicar melhor aos deputados por que acredita que os cortes não vão impedir os profissionais de continuar a recolher órgãos, em dadores vivos ou cadáveres, e a fazer cirurgias. «estes incentivos nem sempre eram entregues às equipas», começou por justificar. «havia hospitais que ficavam com as verbas e não as distribuíam aos profissionais, outros que as usavam para pagar horas extraordinárias dos médicos e enfermeiros que fazem as colheita e as cirurgias e situações mistas. havia até casos de unidades que usavam os incentivos noutros serviços». e garantiu que os cortes não foram uma decisão precipitada, mas uma resposta a uma proposta feita pelos serviços.

‘vão oferecer-me um caixão?’
para a ex-coordenadora nacional desta área, maria joão aguiar – que se demitiu há duas semanas depois de paulo macedo ter admitido que é preciso perceber se o país «pode sustentar o actual número de transplantes» e ter questionado a necessidade de aumentar estas cirurgias –, o corte nas verbas vai ter implicações graves. «enquanto médica e enquanto técnica, para mim isto é absolutamente inaceitável», disse. «é muito difícil aceitar que haja doentes que se podem salvar e vão morrer porque o país está em dificuldades económicas», acrescentou.

pedro santos, de 28 anos, também não tem dúvidas do impacto das medidas de contenção. «vão cortar 50% nos incentivos aos transplantes e não nos dão os medicamentos que são alternativa à operação. vão oferecer-me um caixão?».

sofre de paramiloidose, conhecida como doença dos pezinhos, e há um ano e meio começou a sentir os primeiros sintomas: tem formigueiros e falta de sensibilidade nas pernas. mas foi uma paralisia infantil que o obrigou a andar de canadianas: «a minha situação é urgente». o transplante de fígado é para já a única forma de atrasar a progressão desta doença genética incurável a alternativa é o primeiro medicamento que permite retardar os seus efeitos e que já foi testado em hospitais europeus e portugueses, mas que continua a não estar disponível para os doentes no país. o remédio custa 120 mil euros por ano e os hospitais não estão a dar resposta aos pedidos de importação (ver caixa).

paula dourado espera há meses por uma resposta do hospital de santo antónio, no porto, para ter acesso ao medicamento e assim evitar o transplante.

aos 35 anos, a solicitadora da póvoa do varzim já tem dificuldade em suportar as dores provocadas pela paramiloidose e já foi indicada para fazer o transplante de fígado que lhe aliviará os sintomas: «deito-me e acordo com a mesma dor. quando me levanto custa-me a pousar os pés no chão. parece que estou a andar sobre vidro».

o transplante será, para ela, a última opção. «se há um medicamento que é uma alternativa eficaz não vou optar pela cirurgia, que traz mais riscos de infecções. mas há quem não possa esperar mais porque a doença torna-se irreversível».

carlos figueiras, presidente da associação portuguesa de paramiloidose, recorda que há «uma longa lista de espera para transplante hepático». por isso mesmo, receia «que com estes cortes seja ainda mais difícil conseguir ser operado».

joana.f.costa@sol.pt