Cracóvia e Auschwitz

FALEI HÁ OITO dias das minhas primeiras impressões sobre a Polónia e prometi para hoje um texto sobre Cracóvia e Auschwitz.  Cracóvia, a segunda cidade polaca e a mais turística, é uma joia.  A sua praça principal – chamada Rinek Glowny – leva-nos de surpresa em surpresa. Enorme (é uma das maiores praças medievais de…

FALEI HÁ OITO dias das minhas primeiras impressões sobre a Polónia e prometi para hoje um texto sobre Cracóvia e Auschwitz. 

Cracóvia, a segunda cidade polaca e a mais turística, é uma joia. 

A sua praça principal – chamada Rinek Glowny – leva-nos de surpresa em surpresa. Enorme (é uma das maiores praças medievais de toda a Europa), alberga no seu interior três construções que parecem brotar inopinadamente do chão: uma torre em tijolo vermelho (a Torre da Câmara), uma pequena basílica branca e um edifício que se assemelha a uma igreja mas é um mercado. 

Num dos lados da praça ergue-se a catedral, a Basílica de Santa Maria, um edifício sumptuoso como as grandes catedrais góticas francesas, com a surpresa de ter o interior completamente pintado. Todas as catedrais góticas eram pintadas, mas as pinturas não sobreviveram ao tempo. Ali temos o exemplo de como seriam. E a impressão é muito forte.

Ao contrário de Varsóvia, a cidade de Cracóvia não foi arrasada pela guerra – pelo que conserva a estrutura urbana original e os respetivos edifícios. É uma cidade acolhedora, com ruas estreitas e curvas cheias de lojas e esplanadas, muito diferentes das grandes avenidas que caraterizam Varsóvia e se estendem por uma larga área. Não são visíveis vestígios da destruição nazi, e os da ocupação soviética também são raros. Tão raros, que os prédios dessa época saltam à vista. 

E  m Cracóvia, onde fica a fábrica celebrizada no filme A Lista de Schindler, existia – e lá continua – um extenso bairro judeu, com várias sinagogas, um cemitério e o respetivo gueto. Um gueto que, como os outros, de outras cidades, foi minguando à medida que os seus moradores iam sendo levados para os campos de concentração. O gueto de Cracóvia também foi palco de uma revolta contra os nazis, que acabou esmagada numa praça em que os resistentes foram reunidos e fuzilados. No local existe hoje uma instalação escultórica formada por grandes cadeiras metálicas vazias. Um dos sobreviventes do gueto foi Roman Polanski, que fugiu e seria adotado, sob um nome falso, por uma família que o acolheu.

Cracóvia é, além disso, a cidade mais próxima do campo da morte de Auschwitz.

AUSCHWITZ FICA apenas a uma hora de carro de Cracóvia, num percurso feito por uma estrada verdejante, que não anuncia de todo o terror escondido no seu términus.

O portão, encimado pela célebre frase ‘Arbeit macht frei’ (O trabalho liberta), dá acesso a um campo de edifícios alinhados, como se fosse um acampamento militar – com a diferença de que, em vez de tendas, temos edifícios de tijolo de tamanho médio.

Se não fossem as imagens que guardamos na memória, o local não seria inteiramente desagradável. Antes de ser campo de concentração eram casernas do Exército, e alguns daqueles edifícios já existiam, sendo depois replicados às dezenas com recurso ao trabalho dos presos.

AS IMAGENS da chegada dos presos ao campo – famílias inteiras, casais com os respetivos filhos – são comoventes, pois eles traziam malas, sacos e trouxas às costas, pensando que vinham viver para um sítio melhor. Na sua inocência, entregavam os pertences aos soldados, acreditando que ficavam seguros. Mas, mal viravam costas, estes logo os saqueavam, aproveitando o que tinham de valor e deitando o resto para o lixo.

À chegada, as pessoas eram selecionadas como animais: homens válidos para um lado, mulheres, velhos, doentes e crianças para outro. Os que iam para este lado eram de imediato enviados para a câmara de gás, para não representarem despesas inúteis. Os outros eram aproveitados para o trabalho.

Os escolhidos dividiam-se depois em vários grupos, consoante a sua raça ou ‘atividade’: criminosos comuns, intelectuais subversivos, elementos da resistência, judeus ou ciganos. Cada grupo era identificado com uma cor para se distinguir: verde os criminosos, vermelho os presos políticos, amarelo os judeus.

Os criminosos eram aproveitados como capos, ou seja, auxiliares dos guardas, participando com estes na vigilância e repressão dos presos.

ANTES DE ENTRAREM para as câmaras de gás as pessoas eram mandadas despir, sendo-lhes dito – com requintes de perfídia – para fixarem o número dos cabides onde deixavam as suas roupas, para as irem recolher no fim. Hoje, em grandes salas do campo, estão os despojos desses infelizes: montanhas de sapatos, milhares de óculos, além de toneladas de objetos de cozinha (panelas, púcaros, frigideiras).

A explicação que davam às pessoas para as mandarem despir era simples: precisavam de ser lavadas e desinfetadas por causa das doenças que podiam trazer das longas viagens de comboio que tinham feito até ali em vagões fechados, onde eram obrigadas a fazer tudo, incluindo as necessidades. 

Os ‘banhos’, tomados coletivamente em sinistras salas de paredes e tetos de cimento, significavam afinal a exposição, durante cerca de meia hora, a um gás letal. Os gritos de horror das vítimas eram tão fortes que se ouviam do lado de fora, e para os abafarem os guardas punham motores de motas a trabalhar. 

No fim, os cadáveres eram conduzidos para os fornos crematórios – sendo as cinzas levadas para fora do campo, para adubar as terras. As câmaras de gás e os fornos trabalhavam 24 horas por dia, sendo mortas ali, em média, 5 mil pessoas por dia.

Nos períodos em que não era necessária mão-de-obra, não se fazia seleção à entrada: os que chegavam iam diretamente para as câmaras de gás. E como os fornos crematórios às vezes já não davam vazão, era necessário queimar os corpos a céu aberto. Calcula-se que em Auschwitz tenham sido mortos entre 1,1 e 1,3 milhões de seres humanos, 90% dos quais judeus.

TODOS OS PAVILHÕES eram numerados, e o Pavilhão 11 (ou Bloco 11) era o da punição. Para aí iam os presos que se portavam mal, que intentavam fugas ou que ‘mereciam’ um ‘tratamento especial’ por outra qualquer razão. 

No subsolo desse pavilhão são visíveis umas celas quadradas, de 1,5 m de lado, onde ficavam 4 ou 5 presos. Tinham de entrar agachados por uns buracos junto ao chão. E o espaço era tão exíguo que não podiam deitar-se nem sentar-se, tendo de ficar de pé a noite inteira, retomando no dia seguinte os trabalhos forçados. A entrada de ar fazia-se por uma minúscula abertura do tamanho de uma caixa de fósforos. Muitos morriam por exaustão, outros por asfixia – porque o oxigénio se esgotava.

AS CAMARATAS não eram menos impressionantes. De cada lado dos compridos corredores havia três níveis de catres de madeira, divididos em compartimentos onde caberiam duas pessoas mas dormiam oito. Às vezes batiam-se e mordiam-se para ganharem espaço. Enfim, parece inacreditável como foi possível tratar pessoas assim.

Quando o campo de Auschwitz começou a rebentar pelas costuras, construiu-se Birkenau (ou Auschwitz 2), distante 3 quilómetros do primeiro, que tinha uma única função: campo de extermínio. 

O seu aspeto é diferente de Auschwitz. As construções também são (ou eram) todas alinhadas, como num acampamento militar – mas em vez de edifícios de tijolo tínhamos casas de madeira, e mais pequenas, que se estendiam por uma área a perder de vista. As casas arderam quase todas – e hoje quase só restam as chaminés, construídas em tijolo vermelho, uma por casa, erguendo-se do chão como se fossem as lápides de um cemitério.

Birkenau foi concebido para ser uma fábrica de morte: o local de execução da ‘solução final’ concebida por Hitler para o extermínio dos judeus. O método era o mesmo de Auschwitz: câmaras de gás e fornos crematórios. Mas aí, ao contrário de Auschwitz, quem entrava nunca era para trabalhar – era só para morrer.

AUSCHWITZ à parte, bem entendido, a Polónia – onde nunca tinha estado – impressionou-me muito positivamente. Se não fossem os 40 anos de ocupação soviética, que impediram o boom que se verificou no pós-guerra em países como a vizinha Alemanha, a Polónia estaria hoje ao nível das principais nações da Europa. E, pelo que vi, de certa forma já está. Saí de lá com a sensação nítida de ter visitado um país mais desenvolvido que Portugal. 

E de regresso a Lisboa reforcei essa impressão quando, na Segunda Circular, logo a seguir ao aeroporto, dei de frente com o bairro de barracas que ali existe. Parecia já estar em África. 

Claro que todos os povos têm as suas qualidades – e os portugueses não fogem à regra. Que o diga Madonna, que diz ter recuperado a energia depois de ter vindo viver para Lisboa.