Crocodilos nunca houve nos Açores

Há dois anos João Paulo Serafim foi autorizado a entrar num museu de história natural que estava fechado há 15 anos, em Ponta Delgada. O resultado desse trabalho é agora apresentado até setembro, numa das exposições do circuito de artes plásticas do festival Walk&Talk.

De crocodilos nos Açores não há registo. Há a história deste que, na década de 1970, no tempo em que nos circos havia crocodilos, veio para São Miguel com o Circo Chen e morreu na viagem para ser doado ao Museu Carlos Machado, o mais antigo dos museus de todo o arquipélago, fundado em 1876 pelo naturalista Carlos Maria Gomes Machado, a partir do antigo Museu Açoriano. Museu de história natural que reabriu no ano passado depois de 15 anos encerrado, altura em que João Paulo Serafim conseguiu autorização para entrar e, durante duas semanas, viajar por toda uma coleção em espera, congelada entre tempos. Uma residência artística que fez em julho de 2015, durante essa edição do festival de artes Walk&Talk, cuja primeira parte do resultado pode ser agora vista, até 12 de setembro, no museu finalmente reaberto ao público, na exposição Naturalis Historiae — Quando é que se viu pela primeira vez um crocodilo nos Açores?.

O primeiro crocodilo que João Paulo Serafim viu nos Açores foi então este, no núcleo de Santo André do Museu Carlos Machado, acolhido a partir do final do século XIX por este antigo convento. O crocodilo suspenso junto a umas escadas com que se deparou na primeira visita ao museu fechado, parado no tempo e em todos os tempos. «A única coisa que havia aqui de movimento era ventoinhas e desumidificadores», recorda o artista que regressou na edição deste ano para a apresentação da exposição de fotografias. A faltar estão ainda um vídeo e um livro. «Estava tudo na penumbra, no escuro, era um ambiente quase fantasmagórico, muito heterotópico, era como estar num espaço entre várias épocas».

O som das ventoinhas

Os primeiros registos de João Paulo Serafim foram então de som. O som das ventoinhas – o único que se ouvia. «Comecei a interessar-me por esta ideia de estar tudo parado, então ainda antes de fotografar o que comecei por fazer foram vídeos». Exploração desse contrasenso que era captar em movimento o que estava parado. Pelo meio começaram a vir as fotografias, muitas, das quais em Naturalis Historiae — Quando é que se viu pela primeira vez um crocodilo nos Açores? vemos apenas uma pequena seleção. O tal crocodilo, um dos esqueletos de cachalote que integram a exposição do museu reaberto ainda desmontado, no chão, um veado encostado a uma parede por ter uma perna partida ou o pinguim imperador doado em 1984 ao museu pelo comandante do navio baleeiro Jason, que João Paulo Serafim fotografou da maneira que havia fotografado Afonso Chaves, coronel nascido em Lisboa que cedo se fixou nos Açores, onde viria a desenvolver na viragem do século XIX para o século XX um importante corpo de trabalho nas áreas da geofísica, da meteorologia e do estudo da fauna e flora açorianas.

Boa parte do que João Paulo Serafim dá a conhecer com os registos de uma coleção em espera não está na exposição permanente do museu, que junta às espécies endémicas um conjunto de outras trazidas de fora. «Além do interesse científico e do conhecimento havia também esta ideia de um colecionismo do exótico que vinha do poder, do colonialismo, trazer tudo isto para um museu também tinha a ver com a ideologia vigente», diz enquanto nos conduz à arrecadação que abriu junto a uma das salas da coleção do museu para a instalação Espèce de Cabinet de Curiosités…, um diaporama de 80 slides que misturam registos da coleção de curiosidades do museu com peças do autor — de uma mola de madeira a um crocodilo de brincar da sua filha.

As vacas de duas cabeças

«Fotografei um conjunto de bizarrias [da coleção] já a pensar nesta ideia de as articular com as minhas vivências para um cruzamento entre o bizarro e uma possível curiosidade contemporânea», explica sobre esta espécie de janela para a parte da coleção que não está visível ao público. De ‘bizarrias’, apenas estas vacas de duas cabeças, produto de malformações genéticas que os locais explicam com o cruzamento que se tentou em tempos entre vacas açorianas e outras de maior porte, importadas da Alemanha e da Holanda. Só aqui vemos três, datadas do final do século XVIII.

«Foram malformações que aconteceram aqui. Neste processo, à medida que fui falando às pessoas que estava aqui no museu a trabalhar, fui percebendo que todas tinham muitas memórias e comecei a fazer entrevistas sobre essas memórias». Entrevistas que havemos de encontrar no vídeo que João Paulo Serafim está a finalizar e que haverá de apresentar em breve. «Uma das entrevistas que fiz foi a um senhor que é o caseiro do Pico do Refúgio, o Manuel, que sempre trabalhou com vacas e que me contou justamente que uma vez viu uma vaca parir um bezerro com duas cabeças. Era um monstro». Há quem julgue que é apenas uma exposta no museu, mas são três, todas da mesma época. Coisas da ilha.