Delação premiada?

A denúncia premiada traz ao de cima toda a podridão que as sociedades escondem. Por isso, não deve ser aceite por pessoas de bem – e, por inerência, pelo Estado

Discute-se muito hoje a possível utilização da ‘delação premiada’ no combate à corrupção. 
A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, referiu-se a ela recentemente – embora falando de ‘colaboração premiada’ – admitindo que Portugal a possa vir a adotar. 
Mas que significa isto? Significa ‘premiar’, ou seja, atenuar (ou até perdoar) as penas aos envolvidos em casos de corrupção que aceitem colaborar com a Justiça. E esta ‘colaboração’ traduz-se na denúncia de factos criminosos comprometendo outras pessoas.
As opiniões sobre este tema dividem-se muito, mas de uma forma geral a esquerda está contra e a direita está a favor, o que não deixa de ser surpreendente. Dir-se-ia que o ataque à corrupção seria uma ‘causa’ mais da esquerda do que da direita…
A minha opinião é claríssima: a delação premiada é uma prática abominável, que qualquer Estado de direito deveria liminarmente rejeitar. 

Adenúncia tem sempre algo de desagradável, de eticamente duvidoso. Exceto em casos extremos – quando se trata de crimes de morte ou  situações em que estão em perigo vidas humanas –, a denúncia não é uma prática saudável. E, quando o denunciante pode receber favores pela denúncia, esta ainda se torna mais odiosa. 
Tendo isto em conta, o Estado premiar um criminoso por denunciar os cúmplices para conseguir um aligeiramento da pena é estimular o que há de pior na natureza humana. O seu lado negro, a sua natureza vil.

Adelação premiada resulta da ideia de que os fins justificam os meios. De que todos os meios são legítimos desde que os fins sejam bons. Ora, não é assim. Por uma razão simples: os meios contaminam os fins. Através de meios condenáveis, de meios obscuros, de meios ilegítimos, nunca se atinge um ‘bom fim’. O ‘fim’ fica manchado pelos meios usados para o alcançar. 
E, depois, o Estado não pode deixar de se reger por valores e princípios. Há princípios que um Estado não pode alienar.
Estamos num tempo de pragmatismo desenfreado, que tem conduzido a sucessivas aberrações a este nível. Fornecer seringas aos drogados para eles se drogarem em ‘segurança’, por exemplo, não é admissível. Mesmo que dê resultado, não é aceitável: o Estado não pode ser cúmplice de quem se droga.
E com as salas de chuto passa-se o mesmo.
Em nome do pragmatismo, o Estado não pode abdicar da sua dignidade – pois isso leva a que deixe de ser uma referência, uma pessoa de bem, um exemplo a seguir. 

Devo dizer que as escutas telefónicas já estão no limiar do que é aceitável. As autoridades escutarem conversas particulares de um cidadão, mesmo com autorização de um juiz, é uma invasão da privacidade que roça o abuso. Apesar de tudo, as escutas não são comparáveis à delação premiada. E porquê? Porque nas escutas não há um indivíduo a denunciar outro para se ‘safar’ – é o próprio a denunciar-se. Não estão envolvidos terceiros – é o suspeito a revelar factos que o incriminam. E isto é muito diferente de ser outro a fazê-lo.

Adenúncia  premiada, ao longo dos séculos, tem proporcionado situações terríveis. Tremendas injustiças, atos hediondos. Recordem-se os tempos da Inquisição, em que por vingança se denunciavam ‘hereges’ com ou sem razão. Recordem-se os tempos do estalinismo, em que, para salvarem a pele, pais chegavam a denunciar os filhos e filhos a denunciar os pais, acusando-os de serem contrarrevolucionários. Recordem-se os tempos do nazismo, em que por medo ou maldade se apontava o dedo aos judeus entregando-os a uma morte certa.
A denúncia premiada traz ao de cima toda a podridão que as sociedades escondem por vergonha.

Está na moda menorizar ou mesmo ridicularizar os ‘argumentos morais’. Não sei porquê nem em nome de que relativismo. 
Ora, aqui está um caso que cabe na perfeição nesta categoria: a delação premiada é moralmente inadmissível. Bastaria isto para não ser aceite por gente de bem. E, por inerência, pelo Estado.