Doces tentações para saciar a gula

Porto, Póvoa de Varzim, Fão, Viana do Castelo e Guimarães. O SOL fez-se à estrada para saborear as histórias e os segredos por trás de alguns dos monumentos gastronómicos mais sedutores a norte do Douro. Uns têm mais de 100 anos e outros são um fenómeno recente. Independentemente da idade, formato ou ingredientes, movem multidões…

o nome de uma das ruas que circundam a pastelaria clarinhas – travessa das clarinhas – deixa poucas dúvidas sobre a tradição que reside nesta casa há mais de 100 anos. é neste mesmo local que se fazem as famosas clarinhas de fão há um século. hoje é filipe alves, a quarta geração de proprietários, que gere o negócio e guarda o segredo deste doce que, pelo que nos conta, nasceu e foi ganhando fama pelas mãos da sua bisavó, clara. “ela e mais duas irmãs, a rosália e a amália, começaram a produzir estes pastéis comercialmente, aqui em fão. como tiveram muito sucesso em lisboa, braga, porto e barcelos houve a necessidade de patentear a marca. para isso, tiveram de arranjar um nome. como a minha bisavó se chamava clara, o pastel era branco e havia uma ligação às clarissas (do convento), ficou clarinhas”.

desde 1947, ano em que a marca foi registada, quase nada mudou nesta receita centenária guardada pela família alves. mudaram, no entanto, os tempos e a qualidade dos produtos à venda no mercado. daí os cuidados do proprietário: “a matéria-prima é fundamental. tenho em atenção quando compro os ingredientes para as clarinhas: da chila à farinha. e são tudo produtos locais. mas hoje já não é como antigamente. o mercado exige que tudo cresça à pressão e não dá tempo para as coisas se desenvolverem”. filipe alves confidencia ainda: “no processo de fabrico todos os passos são um segredo: da forma como se trabalha a chila à fritura, que tem que estar num ponto exato para deixar o doce estaladiço e seco”.

nos dias que correm é uma especialidade muito procurada por emigrantes e turistas que, revela filipe, vêm de propósito em busca da clarinha. “como é um processo artesanal, exportar a produção é complicado. mas ando a estudar a questão”.

pastelaria clarinhas

rua azevedo coutinho, n.º 19 – fão

 

herança conventual

juntamente com o castelo e a muralha que circunda a cidade, as tortas de guimarães são uma espécie de monumento. um monumento gastronómico com um recheio feito de ovo e amêndoa e uma capa de massa crocante.

dizem os registos que é uma receita oriunda das freiras do convento de santa clara de guimarães, fundado no século xvi e extinto em 1834. quando o convento fechou, três dessas freiras encontraram na confecção de alguns doces conventuais – entre eles as tortas – uma forma de subsistência.

as herdeiras directas da receita das religiosas são as proprietárias da casa costinhas, situada em pleno centro de guimarães. a pastelaria clarinha também vende as tortas há 60 anos e fabrica-as há mais de 30. “além das costinhas, a família das patrícias, que nos vendia as tortas, também herdou a receita. há uns 30 anos decidiram deixar de fabricar e venderam-na aos meus pais”, explica clara ferreira, filha dos proprietários do estabelecimento.

o preço de cada unidade (cerca de 3 euros) acusa uma confecção demorada. clara diz que “o que encarece é, principalmente, a massa trabalhada à mão. tem vários períodos de descanso e confecção, ao longo do processo. e não se consegue fazer muita quantidade com esta receita”.

isabel fernandes, responsável pela publicação doçaria tradicional vimaranense (2011), explica que o livro surge também da necessidade de preservar algumas receitas e técnicas, que caso contrário correriam o risco de se perderem com o tempo. sobre as tortas de guimarães, afirma: “na documentação escrita, a referência mais antiga que conhecemos data de 1884”. no decorrer das suas pesquisas, “apesar de ter procurado doces que se assemelhassem às tortas de guimarães, o único pastel que encontrei que tem algumas semelhanças são os sfogiatelle italianos. confeccionados em nápoles, são semelhante às tortas, no modo de preparar e na forma”.

pastelaria clarinha

largo do toural, n.º 86-88 – guimarães

casa costinhas

rua de santa maria, n.º 68 – guimarães

 

uma bola com hora marcada

o letreiro na montra não deixa margem aos caprichos do pasteleiro: as bolas de berlim têm horas marcadas na confeitaria natário, situada no centro de viana do castelo. diariamente, às 11 e às 17 horas, uma fila de gente espera ansiosamente os famosos bolos vianenses.

fernanda natário, proprietária do espaço e sucessora do marido, manuel natário, que já havia herdado a confeitaria de sua mãe nos anos 50, conta ao sol: “nos meses de julho e agosto chegam a vender-se 1.500 bolas por dia. há pessoas que estão na fila uma hora e que quando chega a sua vez, as bolas esgotam. fico com muita pena”. explica ainda que estas iguarias recheadas de creme de ovo e polvilhadas com canela, servidas ainda quentes, começaram a ficar mais conhecidas graças ao passa-palavra de alguns amigos do marido. um deles era o escritor brasileiro jorge amado: “sempre que alguém ia à bahia tinha de lhe levar doçaria. e aos poucos as bolas foram ficando conhecidas por todas as partes do mundo”, diz fernanda.

o creme natural, feito à mão, é o segredo do sucesso. é guardado pelos três pasteleiros que fazem parte da casa há cerca de 40 anos e que iniciaram a profissão com apenas 13 anos. a proprietária remata: “a massa todos sabem fazer. no fundo, o segredo é o recheio. e a qualidade das matérias-primas, claro. isto é um negócio que dá muito trabalho, por isso, em breve, reformo-me. mas não sei bem qual será o destino das bolas”.

confeitaria natário

rua manuel espregueira, n.º 37 – viana do castelo

 

rabanadas 365 dias por ano

na póvoa de varzim as rabanadas não são um doce só de natal. ao contrário da clássica rabanada, feita em fatias de pão, a poveira tem a particularidade de ser feita em pão ‘biju’, com leite e ovos, dando origem a uma deliciosa bola esponjosa coberta de canela.

filipe trocado é o dono da pastelaria creme e canela. há cinco anos que aposta na imagem da rabanada poveira, e explica: “quando alguém me perguntava por uma especialidade da minha terra, eu não sabia o que responder. e a verdade é que este doce existe há 50 anos na póvoa. até há pouco tempo só podia ser encontrado em alguns restaurantes da cidade. na altura do natal é que eram mais faladas. nem os próprios poveiros conheciam esta especialidade local. tenho investido muito na imagem da rabanada poveira e hoje em dia fala-se mais nela. mas ainda há um grande trabalho a fazer. é um percurso lento”.

a invenção desta receita nasceu num restaurante local: “esta é uma zona piscatória e vivia com muitas carências. no fundo isto era uma forma de aproveitar o pão seco”, revela filipe.

no ano passado o seu estabelecimento ganhou o concurso a delícia poveira, organizado pelo turismo da póvoa de varzim, e que se realiza na cidade há 15 anos. o responsável refere que “com o tempo a rabanada vai ficando conhecida um pouco por todos os lados –no porto, em braga e barcelos, e até já vem gente de fora para as comer. é uma sobremesa fantástica. fazemos mais de 100 rabanadas por dia. em eventos especiais chegamos a fazer mil. é um trabalho hercúleo, visto que são apenas três pessoas a fazer tudo artesanalmente”.

creme e canela

praça da república, n.º7 – póvoa de varzim

 

um clássico renovado

em 2012 joana e josé costa decidiram abandonar os seus empregos (ela na área da saúde e ele numa multinacional) e adquirir o edifício e a marca registada leitaria da quinta do paço. segundo joana, a ideia foi manter “a cidade do porto envolvida emocionalmente com este estabelecimento, tendo em conta a história que o local traz consigo há gerações”.

hoje o espaço é principalmente conhecido pelos seus éclaires (de vários sabores), mas a história da leitaria da quinta do paço, situada na baixa do porto, remonta a 1920 como produtora de leite e derivados. foi a primeira a realizar a produção e distribuição do leite pasteurizado da zona norte, fornecendo às vendedeiras do porto leite pasteurizado em garrafas de vidro. mais tarde marcou presença com outro produto inovador, o iogurte.

actualmente, além de continuar a vender produtos lácteos com uma longa tradição, o espaço assume-se também como uma pastelaria de fabrico artesanal. e o seu doce estrela é o famoso éclair, de receita artesanal, registado como o doce do porto.

a nova geração de proprietários apresenta o éclair em diferentes tamanhos e sabores. chocolate preto, chocolate branco, café, caramelo, frutos vermelhos e limão, todos recheados com chantilly. joana remata que vão surgindo novos sabores consoante a época e a clientela e que, em breve, haverá “a apresentação de uma nova colecção de sabores. como no mundo da moda”.

leitaria da quinta do paço (baixa do porto)

praça guilherme gomes fernandes – porto

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