Doha. Esse Pelé tão único que jogou no único estádio

No dia 14 de Fevereiro de 1973, o Santos esteve no Qatar para defrontar o Al Ahli e venceu por 3-0. Os habitantes do país podem andar num sino porque têm a possibilidade de ver Messi e Ronaldo ao vivo, mas nesse dia viram jogar o melhor do mundo de todos os tempos e ele…

DOHA – Andamos por aqui a tropeçar em estádios por toda a parte, estádios catitas, dos bons e bonitos, e já não são muitos os que se recordam que nos anos-70 só havia um campo relvado em todo o Qatar, o Doha Stadium, em West Bay, e que levava apenas dois mil espectadores, vejam bem a diferença para os 90 mil que cabem agora no Estádio Icónico de Lusail de seu nome completo. Certo! Dá jeito referir que o total de habitantes não chegava aos 120 mil. Todas as equipas do país, que não eram muitas, jogavam naquele pedaço único um campeonato inteiro. E foi com um orgulho supimpa, que no dia 14 de fevereiro de 1973, o Al Ahli Sports Club, fundado em 1950 sob o nome inicial de Al Najah, recebeu o Santos do Brasil, o clube de Pelé.

Em quase todos os países árabes há um Al Ahli – pode traduzir-se por Nacional – mas Pelé só houve um e não mais voltará a haver outro. Vale o que vale mas, para mim – e afinal sou eu que escrevo, desculpem lá o mau jeito –, Pelé é inigualável, irrepetível, inimitável, incopiável, irrefazível e tudo o mais que lhe queiram acrescentar. Podem os qataris estar aí felizes do coco por poderem ver o Messi e o Ronaldo ao vivo, mas felizes de verdade ainda devem estar aqueles, talvez poucos, que puderam pôr os olhos em Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé, como dizia Nelson Rodrigues. Depois das duas vitórias consecutivas na Taça Libertadores e na Taça Intercontinental, os dirigentes do Santos desistiram de competir. A equipa que tinha uma linha avançada que parecia a letra de um samba – Dorval, Melgávio, Coutinho, Pelé e Pepe – passou a ser uma espécie de Globetrotters, jogando por todo o mundo e recebendo cachets milionários. Em 1973, Pelé perdera os companheiros do samba. A Doha chegou uma equipa diferente na qual jogava o meu querido Marinho Peres, um tal de Cláudio Adão, que aterrou um belo dia na Luz e no Benfica gordo como um texugo, e até um Euzébio, assim mesmo com Z.

 

Sem exageros

O Santos parou em Doha durante uma digressão que levou a equipa a outros clubes do Golfo Pérsico. Os jogadores e técnicos do Al Ahli estavam ansiosos para jogar contra Pelé mas, ao mesmo tempo, com cuidados suficientes para não serem apepinados à custa de uma goleada confrangedora. Encontrei umas declarações de Bayoumi Eissa, o treinador da equipa nessa altura, que sublinham a intenção: “Havia um entusiasmo inacreditável no Qatar! Toda a gente queria ver o Pelé e nós sentimos a responsabilidade de o defrontarmos. Disse aos meus para levarem os lances a sério. Optei por não mandar marcar individualmente o Pelé e pedi-lhes para que estivessem sempre dois jogadores disponíveis para lhe taparem o caminho da baliza”.

Seria o último ano de Pelé no Santos. Depois seguiria para o Cosmos de Nova Iorque e para a aventura meio carnavalesca de querer implantar o futebol nos Estados Unidos, tentativa falhada, como se sabe, tal como falhou a de 1994 quando a FIFA atribuiu o Mundial aos norte-americanos. E, completamente cegos por essa ideia, os homenzinhos que mandam no futebol do mundo, voltam a cair na asneira de nos impingirem outra vez o diacho dos Estados Unidos na fase final do próximo Campeonato do Mundo.

No Doha Stadium toda a gente ficou contente. O Santos ganhou, como dificilmente deixaria de ganhar, apenas por 3-0, o que também deixou a malta do Al Ahli satisfeita da vida, e Pelé marcou um golo, ferrando a sua marca neste lugar que, nos dias que correm, respira tanto futebol pelas narinas e pela boca que nem tem tempo para recorrer à memória dessa tarde épica e inédita. Bem disposto, Pelé distribuiu autógrafos e abraços. Um deles teve direito a uma enorme ovação: um garoto invadiu o terreno e correu em sua direcção, sendo apanhado pelo caminho por dois polícias; Pelé pediu-lhes para deixarem o miúdo à moda de “venham a mim as criancinhas” e apertou-lhe os ossos em pleno relvado. Uns anos mais tarde, o Gulf Times entrevistou o fedelho já feito homem. Chama-se Sultan Al Jassim e é jornalista desportivo: “Já não havia bilhetes, mas nem quisemos saber. Eu e o meu irmão trepámos por uma cerca e entrámos às escondidas. Sentíamo-nos eléctricos. O ambiente era incrível! A certa altura não resisti e saltei para o relvado. Levei nuns apertos da polícia mas Pelé foi grande e fez questão de me abraçar. O público adorou o gesto!”.