Elogio da amizade

Na energia filosófica da Páscoa – tempo de morte e ressurreição – inclui-se uma mensagem muitas vezes esquecida: se vos sentardes numa mesa com 12 amigos dilectos, podereis estar certos de que pelo menos um vos irá negar, e outro claramente trair.

Devemos confiar nos amigos; sem eles, Jesus teria morrido sem glória nem notícia. Mas também não devemos esquecer que, sem um deles – o famoso vilão Judas Iscariotes, que o traiu por trinta dinheiros – Jesus não teria sido crucificado.

A versão do evangelho apócrifo atribuído ao próprio Judas é a de que foi Jesus a pedir-lhe que o denunciasse, de modo a que se cumprisse o destino de sacrifício do Mestre.

Se este assunto tivesse sido dirimido num tribunal português, decerto o acórdão respectivo rezaria que há males que vêm por bem.

Portugal sempre produziu excelente literatura, e meteu a filosofia dentro dela. Fora da poesia e do romance, ensaiamos pouco. Por medo da polícia? Do ridículo? Das duas coisas? Certo é que a filosofia, escassa em volumes autónomos, floresce nos lugares mais inesperados – incluindo os acórdãos judiciais, que nos habituámos a ler mais como repositórios de sabedoria tradicional do que propriamente como relatórios dessas frioleiras que seriam as provas de um crime.

Recordo um inesquecível acórdão zurzindo numa estrangeira que se teria deixado violar por não ter tido em conta que estava “na coutada do macho lusitano”.

Recentemente, um outro acórdão exprimia uma teoria céptica da amizade. Duvidando dos empréstimos a fundo perdido de um amigo a outro, escreviam os juízes: “Diríamos, amizade sim, por que não? Mas tanto assim, também não! E amizade assim, por que razão?” Montaigne responderia: “Porque era ele, porque era eu”. Pedro Paixão publicou um belíssimo romance sobre a amizade intitulado Espécie de Amor.

Creio que a amizade é o amor maior. Confesso que também eu tenho emprestado a amigos, muitas vezes, dinheiro a fundo perdido. Porquê? Porque dinheiro é apenas dinheiro – um meio, não um fim.

Se, aos vinte e um anos, eu tinha um salário de que não precisava para comer (porque vivia em casa dos meus pais) e um jovem e excelente fotógrafo meu amigo não tinha verba para montar um estúdio, por que não haveria de lhe dar um mês inteiro de salário e ter alegria de ver crescer o talento dele? Nessa época, pensava que a vida era uma troca contínua.

Agora, sei que a reciprocidade não é automática; ainda hoje estou à espera de umas fotografias que esse amigo me prometeu.

Mas só quem não teme as desilusões pode experimentar o júbilo dos afectos absolutamente retribuídos. Quem não dá, em geral, não recebe. Quem dá, muitas vezes recebe ingratidão – mas não sempre, nem principalmente.

Os ingratos, os desleais, os traidores e sôfregos acabam muito mais tristes e sozinhos do que os que escolhem a lealdade e a confiança.

Podem dizer que sou ingénua; aos 52 anos não só me é indiferente o que digam (alguma vantagem tem de advir do envelhecimento), como já tenho dados bastantes para garantir que as decepções são em muito menor número do que as alegrias.

Por cada dúzia de seres que me 'dão sopa' quando me acham vulnerável, tenho encontrado pelo menos metade que me servem, de facto, sopa, prato, sobremesa, carinho e consolação.

Por isso, por mais que o tempo e os tribunais me mandem ser cínica, eu acredito na amizade. 

inespedrosa.sol@gmail.com