Embargo

Em dez anos de espera, António Ferreira não só não perdeu a mão, como apurou o savoir-faire e o estilo inspirado e rigoroso.

a segunda longa-metragem de antónio ferreira, embargo, que acaba de se estrear, é a vários títulos surpreendente. por um lado, porque antónio ferreira vive em coimbra, cidade com uma vida cultural muito pobre (a excepção foi o fenómeno u2 deste fim-de-semana) e de onde, há muitos anos, não sai nada de jeito. coimbra fica mais longe de lisboa do que o próprio porto, e ainda mais dos grandes centros do mundo onde se passam coisas e se fazem coisas.

o que torna mais surpreendente que antónio fereira consiga, ao mesmo tempo, viver desterrado em coimbra e fazer cinema, tanto mais que, para fazer os seus filmes, à míngua de apoios e de reconhecimento em portugal, tem que viajar um pouco por todo o lado para arranjar financiamentos e encontrar admiradores. para mais, usou actores de coimbra, e é difícil imaginar melhor do que filipe costa e cláudia carvalho, para só falar dos principais, sem esquecer a participação especial de josé raposo, que faz aqui um cameo perfeito.

depois, porque saramago, tão difícil de convencer a deixar que adaptem os seus livros ao cinema, autorizou-o a adaptar um conto de 1973, inspirado pela crise da gasolina nas bombas portuguesas, que criou, na altura, a histeria no país. e porque não se opôs a que, partindo do pressuposto do conto (um homem, durante o ‘embargo’ de gasolina, fica fechado no carro e convence-se que não pode sair), antónio ferreira e o seu excelente argumentista, tiago sousa, inventassem uma longa-metragem com personagens novas e novas peripécias e, sobretudo, dessem um tom diferente ao pesadelo de saramago.

ou, se quiserem, tivessem a audácia necessária para ‘completar’ o conto do nobel, de modo a que a personagem, no final, acorde do pesadelo, o que é mais consentâneo com o tom de esquece tudo o que te disse, esse excelente filme com que fez a sua estreia, já lá vão dez anos! mas, em dez anos de espera, antónio ferreira não só não perdeu a mão, como apurou o savoir-faire: soube pôr os escassos meios de produção ao serviço do estilo, que é, ao mesmo tempo, rigoroso e inspirado. e fez um filme que se situa num terreno difícil – o do humor absurdo e do lirismo cómico – porque é o mais desconcertante para o espectador.

mas há outras razões para que o filme seja surpreendente: vítima do pesadelo que é o ica (depois do filme de estreia, o realizador levou anos a conseguir um subsídio que, por razões várias, acabaria por não usar), antónio ferreira teve que aproveitar um magro subsídio a uma curta-metragem para a transformar, com apoios angariados no brasil e em espanha, nesta longa-metragem.

no momento em que a ministra da cultura anuncia uma nova lei do cinema, espera-se que não seja mais uma oportunidade perdida de acabar de vez com esse cancro que é o sistema dos concursos em que o estado chama a si o poder de promover, tantas vezes, a mediocridade e de castrar realizadores talentosos como é o caso de antónio ferreira.

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