Espermatozóides e ideias têm a mesma natureza

Não tenho uma relação próxima com a religião. Acredito na transcendência, creio em Deus, gosto de pessoas e defendo que a viagem, todas as viagens essenciais, são interiores. Da Igreja Católica, se acreditarmos no Divino, uma única constatação: é inquestionavelmente obra de Deus. Como poderia não o ser? Como poderia resistir a tanta barbaridade, a…

Mas não aguardo resposta. O caminho é de pedras, pelo menos é-o para quem acredita que a existência terá múltiplas fórmulas. Se o mundo fosse um somar de felicidades, se não existisse morte, não precisaríamos de justificar coisa alguma, talvez não necessitássemos de Deus. Tanto já vimos da morte, e tanto há dela de pressentimento, mas nada realmente sabemos. Haverá salões de baile? Amigos que nos recebem? Anjos que indicam caminhos ou sombras que nos desencaminham? Ou uma escuridão indefinível que nos mergulhará no eterno esquecimento? A uma conclusão podemos chegar juntos: a morte nunca nos deixa viver até ao fim o último dia da nossa vida. 

O Natal está a chegar e ouvir falar do Céu como destino dos bem-aventurados é o mesmo que escutar outra vez a brisa da infância. Por isso, gosto que me digam que as pessoas a quem amei têm uma casa entre as nuvens secretas, amigos entre os querubins e um telescópio que observa as minhas dúvidas. O Céu é o meu lugar mágico. Não por sentir que seja Verdade, mas por saber que é a porta para uma infância onde todos estão vivos. 

Acontece-lhe também a si, desconfio. Apesar das diferenças entre pessoas, há muito que nos toca e aproxima de maneiras idênticas. Todos nascemos de uma guerra inclemente, os que têm mais sorte são resultado de uma relação de amor entre duas pessoas (o que não lhes garante a felicidade, mas acredito que os molde no que são de mais puro).

Uma guerra, dizia. É um facto. Em livros de escola aprende-se que a curta vida dos espermatozóides é uma batalha sem complacência – em 24 horas de desespero e sofreguidão procuram sobreviver, mas no interior do corpo feminino só uns poucos eleitos encontram o óvulo, sem dúvida uma caça ao tesouro para piratas e meliantes, não para meninos. Com as ideias é exactamente o mesmo. Se não tenho um papel à mão e as aponto logo, escapam-se num poço sem fundo onde, por mais que me torture, não lhes voltarei a pôr a vista em cima. Espermatozóides e ideias possuem a mesma natureza. Têm cabeça e cauda. Movem-se rápido, são pequenos cometas capazes de gerar vida e novos sonhos. A maioria deles e delas morre antes de chegar ao óvulo e ao papel. Brindo a uns e a outros num minuto de silêncio. Ou de palmas, hoje mais na moda. 

Falamos de amor. 
Vai tantas vezes dar ao mesmo. E quanto a amor, ao que normalmente está a ele associado, não existem seres tão perfeitos como os gansos selvagens. Há uns anos soube da história de um ganso que navegava pelo seu rio desde que ela lhe morrera. Sozinho. Na juventude voou com os outros como ele, chegou a sair da formação para ajudar alguém em dificuldade, estás-lhes no sangue. Depois ficou mais velho, viu morrer a companheira e despediu-se de todos. Não é um caso único entre os da sua espécie. Os que nasceram gansos selvagens, de que existe memória desde o Egipto dos faraós, só têm uma única paixão, não há segundas núpcias ou novas tentativas. Apenas um longo rio, o tempo que resta e uma memória no horizonte. 

Bonito, não é? Se a maioria de nós o soubesse fazer seria mais fácil, mas talvez (cá para nós) não fôssemos estes aqui, seríamos outros. Se, aliás, o amor e a própria vida não fossem uma soma de acasos teríamos que fazer as coisas rigorosamente ao contrário. Escolher a pessoa que amamos, ou por quem estamos apaixonados, teria de ser mais um exercício de acumulação de provas do que uma intuição. Só que o Amor, nas suas mais variadas formas, não funciona assim. É um encontro no momento certo, uma pequena chispa, um quase-nada. Exactamente o mesmo combustível de que se faz o desamor. Ateamos rápido no que nos consome o coração, mas também no que nos destrói as entranhas. Uma pequena chispa. Um quase-nada. Um encontro no momento certo. Ou errado. 

É que conheço quem amando, não goste. Sendo mais raro existe como o seu contrário que é, sabemo-lo bem, tão corriqueiro como associar as flores à Primavera e as praias ao Verão – quantos e quantos gostando muito nem assim conseguem amar? Esforçando-se bastante convencem-se que amam ou fazem-no por hábito, o que sendo uma demanda apreciável não é sentimento como o amor de que falo. Agora, amar sem gostar é matéria inflamável de espíritos e virtudes, baralha a cabeça, remete-nos para psicólogos. Não é caso para tanto. Porque gostar implica somente com os sentidos, com o que temos à vista, mesmo o que julgamos ser profundo. E amar implica isso mais o que não conseguimos explicar, o que nos acontece fora da vista, nos quartos fundos de cada um. E há quartos que, de tão profundos, nos pedem o eterno abraço de quem nos irrita os sentidos.