Esquerda a aviar

Longe vão os tempos em que Francisco Louçã, em mangas de camisa e de sacola a tiracolo, apanhava o autocarro ou o elétrico para ir para a Assembleia da República sentar-se no seu lugar na ponta esquerda do hemiciclo, ao lado de Luís Fazenda. Mais longe vão os tempos das romarias à freguesia sintrense de…

 

Já menos longe vão os tempos em que Louçã, de sorriso estampado no rosto e com o tom de voz paroquial que o caracteriza, liderava as campanhas fraturantes pelo casamento gay ou contra o euro, a União Europeia e a troika.

No entretanto, Louçã descobriu as vantagens de não ser líder, ou coordenador, de um partido. Sobretudo, e como tantos outros mentores ou gurus de aparelhos partidários, percebeu quão mais profícuo, para si, pode ser deixar de o ser mas ter amigos/as ou discípulos/as que o são e sobre os/as quais pode exercer a sua influência. Com menos exposição e maiores dividendos.

Louçã passou a senador. Passou a debitar opinião e comentário. Na televisão e nos jornais, programas ou crónicas semanais, acumuláveis com a atividade letiva remunerada, que induzem os jornalistas seus interlocutores a tratar o camarada Francisco por Senhor Professor Francisco Louçã.

Louçã descobriu que também ele, a propagandear as suas teses e doutrinas políticas com muito mais eficácia como professor do que como político e dirigente do Bloco, podia até ser «generosamente pago» – para usar terminologia que lhe é cara quando assesta baterias a adversários políticos ou ideológicos.

Louçã sempre fez parte da chamada esquerda caviar, defensora dos modelos trotskistas ou comunistas, mas apreciadora dos hábitos mundanos mais burgueses.
Mais recentemente ainda, passou a aparecer em público e fora das sessões solenes da Universidade de fato e gravata – Conselho de Estado oblige.
E, pelos vistos, tomou-lhe o gosto de ser conselheiro.
Conhecendo-se-lhe a fama de teórico (e retórico) e a reputação de bom professor e economista – aliás, é curioso o que Cavaco Silva sobre ele escreve no livro Quinta-feira e outros dias, frisando a diferença entre Louçã sozinho e quando acompanhado pelos seus camaradas –, não deixa de ser surpreendente a escolha, esta semana, para o Conselho Consultivo do Banco de Portugal.

Sim, por proposta do ministro das Finanças, Mário Centeno, aprovada em Conselho de Ministros.
É extraordinário, sobretudo considerando o que disseram Louçã e o Bloco de Esquerda da entidade supervisora e do governador do Banco de Portugal dos quais será agora conselheiro. E não foi há muito tempo. Desde sempre e sobretudo nos últimos anos e meses.
Mas assim se percebe como funciona tão bem a ‘geringonça’. Independentemente das clivagens – quando não mesmo divergências insanáveis – ideológicas, o pragmatismo dos senhores fala mais alto.

O PCP e o BE fazem o número, para os media e para o povo, de que defendem os direitos dos trabalhadores, com vínculo ou sem ele, mas pragmaticamente tratam é dos seus.
Se o PCP alimenta a sua máquina e a sua clientela em muito pelas autarquias, dos municípios aos serviços municipais e municipalizados, o PS de Costa não ataca os bastiões comunistas e até promete nem lá ir fazer grande campanha.

Se o BE diz que o Estado tem de dar o exemplo no combate ao trabalho precário, o Governo responde e emprega… bloquistas (tomemos o exemplo de Louçã).

Louçã não é, obviamente, o único. Nem será, porque com competências e com currículo, chocante como outros casos (inclusivamente denunciados publicamente mas sem qualquer efeito) de quem sem currículo para assumir, por exemplo, o cargo de diretor-geral. 
Mas é o mais visível.

Na verdade, perante os casos concretos, não se vê PCP nem BE a clamar contra ou a pedir explicações ao Governo sobre os concursos abertos por entidades do Estado que excluem expressamente a possibilidade de candidatura de contratados a prazo ou prestadores de serviços.

E na hora h, os deputados comunistas e bloquistas – com mais ou menos declaração de voto – lá estão para assegurar o indispensável suporte parlamentar ao Governo socialista.
Imagine-se o que seria se os papéis estivessem invertidos e o Governo fosse da direita liberal e reacionária. O senhor professor Louçã, por certo, não perdoaria.

O certo é que, assim, a reforma da Administração Pública, sempre adiada mas imprescindível ao futuro do país e ao alívio de uma carga fiscal (direta e indireta) que penaliza estupidamente os contribuintes e sufoca as empresas para alimentar uma máquina do Estado (administração central e local e um sem número de serviços delas dependentes) absurda e obsoleta, não avançará nunca. 

O clientelismo vai continuar a falar mais alto. E a hora, e a vez, é da esquerda se aviar… porque não faltam boys socialistas, comunistas e bloquistas para os jobs que o Estado já não devia ter.