Querida avó,
Como corre essa estadia pela Ericeira?
As coisas em Lisboa estão ‘de gritos e apitos’.
O cerco volta a apertar por causa da Covid, já falam em novo confinamento… ‘Está uma confusão dos diabos’.
Uma coisa é estar fechado em casa no Inverno, mas no Verão? Ninguém merece! Quer dizer, por cauda de uns celebrarem os Santos, os jogos de futebol, a festarolas e afins … pagamos todos. ‘Anda tudo ao Deus dará’.
Tu deixa-te estar por aí, pois aí é que estás bem. Até eu me retirava para a Ericeira, mas tudo ‘Custa os olhos da cara’.
Uma vez que nos devemos manter por casa tenho aproveitado para ler. De momento estou a ler o livro Sem Rei Nem Roque. Um livro sobre as origens das expressões populares escrito pelo João Palma e com magnificas ilustrações do Rodrigo de Matos.
No ‘Diário’ de hoje já referi algumas expressões. Uns sabem o significado, outros ‘Andam à nora’. Também sabemos que dourar a pílula se refere à tentativa de melhorar a aparência de uma situação ou coisa menos boa, mas o que poucos sabem é como nasceu a expressão. Tu sabes porque é que, quando se atribui responsabilidades a outros, se diz, ‘eles que são brancos, que se entendam’? E, já agora, porque é que, quando se é malsucedido ou não se consegue cumprir determinado objetivo, se usa expressão ‘dar com os burros na água’?
Mas se há livro de expressões que gosto, é o teu: Expressões com História que junta a mestria das tuas palavras e as magnificas ilustrações de Ricardo Cabral.
Cada vez que folheio o livro, sinto-me como o Pedro (o personagem central do livro). Há sempre uma explicação para as frases que usamos mesmo sem saber porquê.
Mas o importante mesmo é saber porque as empregamos. Nada como saber a origem das coisas caso contrário ficamos ‘Sem perceber patavina’.
‘Ponho as mãos no fogo’ em como diariamente passas horas nas esplanadas à beira-mar!
Bjs. Não fiques ‘A ver navios’.
Querido neto,
Agora por tua causa ando só a usar expressões com história. Sim, é o nome do meu livro. Nesse livro só escrevi quarenta expressões, fiquei de escrever um segundo volume, mas ainda não houve tempo. Mas queria muito escrevê-lo, porque agora até há expressões muito mais modernas.
Há dias, por exemplo, passou na minha frente uma miúda carregadíssima de embrulhos. Sorriu e exclamou:
«Pareço o preto da Casa Africana!».
Continuou a andar mas virou-se para trás e disse:
«Que eu nem sei o que isto quer dizer, a minha avó é que está sempre a repetir isto…».
Estive para lhe explicar, mas ela já ia rua abaixo.
Claro que, nestes tempos, só os mais velhos é que ainda sabem do que se trata — um boneco preto, carregado de caixas, à porta de uma loja que se chamava Casa Africana. Hoje já não há preto nem Casa Africana — e mesmo que houvesse, o politicamente correto nunca deixaria que se dissesse tais coisas.
Lembro-me muito bem quando decidi escrever esse livro. Eu estava num café, e alguém exclamou :
«Caramba! Aquela é mesmo uma Maria-Vai-Com-As -Outras! » — e seguiu-se uma asneirola, que eu aqui não reproduzo porque estou a escrever num jornal sério.
Ri-me, e tentei explicar ao senhor o que aquilo queria dizer mas ele não acreditou numa palavra que eu lhe disse. Para quem não sabe, aí vai a explicação: quando a família real vivia no Brasil, D.Maria I acabaria por enlouquecer e não podia ir sozinha para lado nenhum. Por isso tinha de andar sempre acompanhada. Daí o ‘Maria vai com as outras’.
Falas-me em ‘ver navios’, por estar na Ericeira.
O único navio de que às vezes as pessoas de cá se lembram tem uma história muito triste. Trata-se do navio Angoche, que em Abril de 1971 partira de Nacala em direção ao Porto — e nunca lá chegou. Afundado, a tripulação, na sua maioria aqui da Ericeira, desapareceu toda sem deixar rasto. E 50 anos depois, ainda ninguém sabe o que aconteceu.
E vou apanhar sol enquanto há…
Bjs.