Fundamentalismo e valores

Do mesmo modo que, como escreveu André Breton, a pornografia é o erotismo dos outros, a cobardia é a coragem dos outros, e ao ideal dos outros chamamos ganância. 

Queixamo-nos da queda dos valores, esquecendo que estes sempre estiveram suspensos pelo fio oscilante da perspetiva. Sucede que, no mundo contemporâneo, as perspetivas se multiplicam exponencialmente, sem que essa multiplicação corresponda a uma ampliação da visão porque ocorre em simultâneo com uma aceleração feroz do tempo. A acumulação de imagens a alta velocidade atordoa-nos: excesso de cores, excesso de sons, défice de sentido. 

É por isso que, abreviando, as religiões prosperam; elas agarram no Tempo que o homem abandonou ao desfazer-se de Deus. 

É também por isso que facilmente fisgam o espírito temporal da juventude, que se concentra na obsessão da morte e da imortalidade. 

Os fundamentalismos alimentam-se da avidez idealista dos jovens, procuram-na, seduzem-na, desviam-na, transformam-na em carne para canhão. 

Sempre que um jovem jihadista se torna, através da morte, capa de jornal, milhares de outros se entregam a esse destino de glória. Se não acreditam em mim leiam Mishima, que escreve como se derramasse luz sobre as páginas e sabia tanto destas coisas que acabou por cometer hara-kiri. 

É sem dúvida confortável pensarmos, à esquerda, que o fundamentalismo se resolveria com uma sociologia correta (fim dos bairros suburbanos discriminatórios, emprego para todos, integração, trá-lá-lá) ou, à direita, que a solução estaria no reforço da segurança (fecho das fronteiras, reforço da Polícia, regresso aos valores, ao patriotismo, trá-lá-lá). 

A esquerda tende a achar que a vitória contra os ataques do fundamentalismo passa por muitos atos de contrição do ‘Ocidente Malvado e Eternamente Culpado’ (nisto, a esquerda mostra-se, diga-se de passagem, bastante católica) e a direita tende a considerar que a guerra se combate com guerra, recuperando o ânimo de cruzada do cristianismo de antanho (nisto a direita mostra-se simultaneamente conservadora e de um empreendedorismo imparável).

Numa coisa esquerda e direita coincidem: o fundamentalismo islâmico pretende aniquilar o nosso modo de vida (embora a esquerda não goste da expressão e lhe prefira descrições explicativas como «as sociedades democráticas e as suas liberdades»), e isso não pode acontecer. 

Pese alguma esquerda radical entender a burqa como opção e incluir a embaraçosa lei islâmica que corta membros, tortura e apedreja até à morte sob a alínea de ‘cultura outra’, e alguma esquerda moderada entender o lenço islâmico como opção livre da mulher e defender que a imensa maioria dos crentes islâmicos ama a paz e a harmonia (um amor tão profundo que quase nem se alheia de si mesmo para condenar os atos dos fundamentalistas que execra), há um entendimento unânime: é necessário defender os direitos humanos a duras penas construídos pelo Ocidente. No ‘como’ é que o consenso é mais difícil. 

François Hollande saiu finalmente da sua mota de flâneur de jupes parisiense e mostrou ter ultrapassado a adolescência: anunciou que a França está em guerra, exortou a Europa a acompanhá-la, mandou o défice e o pacto de estabilidade às urtigas, decretou sensatas medidas de segurança e disse esta frase cintilante: «Não se trata de uma guerra de civilizações porque eles não têm nenhuma». 

Às vezes basta uma frase para começar a desacelerar o tempo e ver calmamente a paisagem, com a sua exuberante flora de valores. 

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