Gambrinus. Há 80 anos a tratar a restauração por vossa excelência

À mesa do Gambrinus já se sentaram os manifestantes do primeiro 1.º de Maio e o imperador do Japão. Mas seja quem for o cliente, os 55 funcionários desta casa enchem a bandeja com três coisas: peixe fresco, cozinha aberta e os melhores croquetes de Lisboa

No primeiro Dia do Trabalhador do pós- -25 de Abril, foram poucos os que ousaram abrir portas a quem precisava de petiscar entre manifestações. Sem esperar ver entrarem portas adentro dezenas de pessoas munidas de cestas com farnel, Dário Afonso nem pensou dar tréguas a uma casa pouco habituada a horários de fecho. “E se fosse avisar alguém de que não podiam comer aquilo que traziam de casa? Ui! Até fascista me chamaram.” No tempo do vale–tudo, o Gambrinus ditou uma regra: a partir daí fechariam sempre a 1 de Maio.

Mas calma, não pense que vai ser difícil conseguir um dia para ir provar os melhores – sim, neste departamento arriscamos sem medos – croquetes de Lisboa. Com a exceção deste dia, a que se junta a noite de Consoada, são poucas as horas em que o número 25 da Rua das Portas de Santo Antão não tem alguém pronto a encaminhá-lo para uma das mesas livres do momento. E quem diz mesa diz balcão, que aqui há assentos para todos os gostos e carteiras. “Há quem diga que não vem cá por ser caro, mas tenho comido tanta coisa má por essa Lisboa fora aos preços desta casa que não percebo esse argumento.” Dário Afonso defende o Gambrinus como se da sua casa se tratasse. “Às vezes é mais do que isso”, confessa. Chegou mesmo a viver no andar de cima do restaurante onde começou a trabalhar em 1964, ainda como empregado de mesa. Foi, aliás, como inquilino do primeiro andar que conseguiu detetar um incêndio que a meio de uma noite de janeiro quase destruía todo o restaurante. “Tinha acabado de fechar, subi a casa e, quando estava a lavar os dentes, a pasta cheirava-me a fumo”, conta. Abriu a porta e percebeu que um curto-circuito no computador quase impedia que a casa chegasse hoje inteira às comemorações dos seus 80 anos.

Arte fora do prato Basta tirar os olhos do prato por dois segundos – tarefa árdua, bem sabemos, mas que garantimos valer a pena – para perceber que na sala grande, a escolhida por Dário para nos contar história atrás de história, a arte não se fica pelo empratamento. Uma tapeçaria da autoria de Sá Nogueira enche toda uma parede e são vários os vitrais coloridos espalhados pelo restaurante. “Venha cá ver”, orienta Dário, em direção à casa de banho feminina. “Até aqui dentro há arte”, diz a apontar para mais um vitral do pintor português.

A estes pequenos apontamentos foram–se juntando pormenores que nunca foram alterados. Os copos são de cristal, as toalhas de algodão e passadas a ferro na lavandaria do restaurante, as cadeiras de madeira e couro português, tudo gravado com o logótipo do restaurante. “E se tentamos mudar alguma coisa”, conta Ana, que entretanto se juntou à conversa, “há sempre alguém a reclamar”. Até as obras de ampliação da casa de banho – “eram minúsculas, nem faziam sentido num sítio destes”, conta a sócia-gerente – não foram bem vistas por todos. “Basta mudar o estilo dos copos ou o tamanho dos pratos para haver alguém a reclamar”, acrescenta Dário, que com o tempo já aprendeu a fazer orelhas moucas a mentes mais teimosas.

Das mãos do empregado tira um prato de 32 centímetros. “Não quero cá pratos pequenos como agora se vê, com uma azeitona, um tomate-cereja e uns pingos de molho”, ironiza. No Gambrinus, os pratos grandes não são um capricho, são uma necessidade. “Precisamos de espaço para empratar como deve ser”, conta Ana. “Ah pois, aqui o serviço é à antiga”, arremata Dário. Pedimos uma tradução para o “à antiga” de Dário, que em três tempos dá uma lição sobre a arte de bem servir. “A comida não vem em travessas da cozinha, tudo é servido no prato do cliente”, conta. Além disso, todos os funcionários sabem tirar as espinhas a um peixe, fatiar carne e descascar a fruta de forma profissional. A mestria é tanta que antigamente até as galinholas eram feitas à mesa. “Imagine, vinha a galinha ainda crua na panela para ser cozinhada em frente ao cliente”, conta Ana, cujas memórias fotográficas se confundem com as histórias de um dia-a-dia passado entre as salas do restaurante, mesmo aquelas às quais os clientes não têm acesso.

Filha do galego José Seoane, que chegou a ter 50% do restaurante, Ana lembra-se de quando se tinha de pôr em bicos de pés para conseguir espreitar para o aquário de marisco vivo. Ou de quando o pai a chamava para contar as notas “todas para o mesmo lado, direitinhas”, ao fim do dia, e fazer a folha de caixa à mão. Quando em 2007 assumiu a parte administrativa do restaurante, a folha de caixa já era elaborada no computador, “mas continuo a pôr as notas todas para o mesmo lado, direitinhas”.

à mesa com quem sabe “Adivinhe lá quantas pessoas trabalham aqui.” A pergunta tinha manha, já se sabe, mas mesmo assim arriscamos uns singelos 15 funcionários. Ana e Dário soltam um riso trocista quase em uníssono. Cinquenta e cinco é o número certo, e escrito por extenso aumenta a sensação de grandiosidade. Só na cozinha são 20, “mas por turnos”, comenta Dário, “que isto agora é tudo muito certinho, oito horinhas, cinco vezes por semana, e mais nada”.

Pelas duas salas e o balcão circulam os três chefes de mesa obrigatórios e pelo menos 11 empregados que vão satisfazendo os desejos como se lessem mentes. À mesa começa a chegar o presunto, as famosas torradas com manteiga e três tipos de mostarda para bem enterrar os croquetes feitos com carne comprada especialmente para o efeito. “Aqui não há cá coisas feitas com aparas do que sobra ou com restos das outras carnes”, avisa Dário.

Para prato principal vemos ser fatiado o robalo frio montado no centro da sala e que de tão colorido, graças aos acompanhamentos, quase se confunde com as obras de arte das paredes. Paulo Pereira é chefe de sala ao nosso serviço e, em dois tempos, emprata o peixe, acompanhado de várias saladas e molhos especiais. De barriga cheia, dizemos não à mesa de sobremesas montada no corredor, mas não sem antes fazermos contas ao espaço livre deixado para um último croquete. Não sei se já tínhamos mencionado, mas são mesmo os melhores de Lisboa.