Himmler, o genocida que ‘conseguia ser um pai normal’

Um conjunto de cartas do ‘pai’ do Holocausto que estiveram durante décadas fechadas num apartamento em Israel acaba de ser editado em Portugal. “Heinrich Himmler – Correspondência” (ed. Bertrand) oferece uma janela para a vida familiar e revela uma face menos sombria do chefe daSS

Himmler, o genocida que ‘conseguia ser um pai normal’

Em janeiro de 2014, o jornal israelita “Yediot Aharonot” e o “Die Welt” revelaram pela primeira vez excertos de cartas, diários e fotos que permitiam um vislumbre da vida privada de Heinrich Himmler, chefe das SS e ‘pai’ da Solução Final, que se saldaria na morte de 6 milhões de judeus nos campos de concentração nazis. Os documentos, que foram roubados da casa da família Himmler por dois soldados americanos no final da guerra, passaram décadas no apartamento de um artista e colecionador em Tel Aviv, até sempre comprados pelo pai da realizadora israelita Vanessa Lapa, que em 2014 apresentou no Festival de Berlim o documentário “O Homem Decente”, feito com base nesse arquivo.

Uma seleção desse material chega agora a Portugal, reunida no volume “Heinrich Himmler – Correspondência”, edição crítica de Michael Wildt, especialista no período nazi, e Katrin Himmler, sobrinha-neta do chefe das SS.
A correspondência entre Himmler e a sua mulher, Margaret, “vai desde o primeiro encontro, em 1927, até ao final da guerra, em 1945”, explica o prefácio. “Ao início as cartas parecem de uma banalidade extraordinária; nada indica que o homem de 1927 irá evoluir e tornar-se um genocida: duas personalidades bastante simples – um funcionário do NSDAP [o partido nazi] e uma enfermeira divorciada”. 

‘Heini’ e ‘Marga’, como se tratavam, conheceram-se numa viagem de comboio entre Berchtesgaden – onde nem sonhavam que anos depois haviam de ser hóspedes de Adolf Hitler no seu refúgio nas montanhas – e Munique. Ela era divorciada e sete anos mais velha, mas correspondia ao ideal germânico dele. Nas cartas ele referia muitas vezes os seus “belos cabelos louros e bondosos olhos azuis”.

A correspondência versa sobre as trivialidades do quotidiano – o que comiam, o que viam, o frio, a chuva e o calor, compras, assuntos domésticos ou íntimos (como “um problema intestinal, com todas as complicações que o acompanham”). E a sua quantidade é reveladora do tempo que o casal passava afastado, por compromissos profissionais de Himmler, que tinha de participar em conferências ou discursos, organizar a logística dos campos de concentração ou, a partir de 1939, deslocar-se à frente de batalha. O Reichsführer queixava-se muito da carga de trabalho, mas curiosamente nunca da sua natureza…

Himmler era formado em Agronomia e o casal mudou para uma casa no campo, onde cultivava a terra e mantinha animais. Tiveram uma filha, Gudrun, nascida em 1929, e em 1933 adotaram Gerhard, um órfão de pai que acabaria por lhes trazer problemas. “O Gerhard tem uma natureza de criminoso. Roubou novamente dinheiro nalgum lado e mente de uma maneira indescritível”, escreveu Marga ao marido no início de abril de 1938. Segundo os autores deste volume de correspondência, “durante anos, ele [Gerhard] temia as visitas de Himmler a Gmund – este aplicava-lhe corretivos brutais como punição –, o que não o impedia de ir, por vezes, pescar tranquilamente com o rapaz, como este recorda: ‘Ele também conseguia ser um pai normal’”. 

Nas cartas, Himmler mostra-se um marido dedicado e um pai afetuoso – “dá um beijo à bonequinha do seu papá” –, não fazendo referências diretas ao que via na frente de batalha ou à realidade dos campos de concentração. “Espero que não vejas demasiadas coisas horríveis”, escrevia-lhe a mulher.

Enquanto a guerra atingia o seu pico, Himmler mandava para casa presentes de flores, chocolates, café, lenços, guloseimas, champô, enguias e peixe enlatado. Mas face aos responsáveis nazis, mostrava uma faceta menos generosa. A 24 de maio afirmava: “Não sou um homem sanguinário ou um homem que tenha prazer ou se divirta a ter de fazer algo de duro. Por outro lado tenho nervos tão sólidos e uma tal consciência do meu dever […] que quando considero alguma coisa necessária executo-a sem compromissos. Não me achei no direito – isso diz respeito precisamente às mulheres e aos homens judeus – de deixar as crianças crescer para se tornarem vingadores”.

Quando a guerra estava já perdida, Himmler disfarçou-se de gendarme, mas isso não o impediu de ser capturado por soldados britânicos. Suicidou-se na prisão com uma cápsula de cianeto. Ao ser informada da morte do marido, “a Sr.ª Himmler não mostrou qualquer emoção”, escreveu a jornalista Ann Stringer. “Foi a mais fria manifestação de controlo absoluto dos sentimentos humanos que eu jamais vi”.