HIV: O vírus do silêncio

Esta história não é bonita. Não começa por ‘era uma vez’, mas por ‘era muitas vezes’, pelo seu número incontável e silencioso. E, infelizmente, não são apenas histórias, são a realidade. A maior parte começa como um caso de amor, é de lei. Foi o que se passou com Margarida (nome fictício), que dividiu a…

a relação, com alguns tropeços, lá ia seguindo o seu curso. até que, em 2004, margarida notou que estava a emagrecer. apareceram-lhe estranhas borbulhas nas pernas. foi à médica de família, sem quaisquer ansiedades de maior. «ela mandou-me fazer várias análises que não deram em nada», conta. depois acrescentou outro exame que margarida faria «se quisesse». por descargo de consciência, a paciente foi fazer a análise: «no laboratório vi logo a cara do analista, que me mandou repetir o exame. e pronto». margarida estava infectada com vih. como lhe poderia ter acontecido tal coisa, a ela, mulher de um só homem toda a vida, recatada, mãe de família sem ‘vícios’ ou, como se dizia, sem ‘comportamentos de risco’ que lhe valessem tudo aquilo?

a resposta era fácil e não foi assim tão surpreendente. o marido era o agente transmissor. margarida até já sabia que muitas vezes dormia com o inimigo. «não sei como ele terá apanhado a doença. sei que ele, em novo, andava sempre com muitas mulheres e chegou a andar com prostitutas», diz ela, hesitante em classificar as companheiras de ocasião do consorte. o pior foi depois a redoma de silêncio em que teve de ficar. o marido até já andava em tratamentos, mas nunca lhe tinha dito para que serviam todos aqueles remédios que ele tinha de tomar de manhã e à noite.

mas quando margarida lhe foi dar a novidade, a reacção foi pior do que a notícia fatídica. «a única resposta que ele me deu foi ‘tu tens de morrer’», num encolher de ombros que a deitou abaixo definitivamente.

da indiferença cruel do marido margarida passou ao papel de sequestrada emocional: «ameaçou-me que me matava se eu contasse aos nossos filhos. eles só souberam mais tarde, quando ele já estava muito mal». o marido morreu em 2009, e margarida pôde, enfim, receber o apoio dos filhos. deram-no incondicionalmente, conhecendo já de há anos o comportamento errático do pai e as ameaças que lhes dirigia. nem eles escapavam à ira paterna.

esta é apenas mais uma história que torna o vih um problema adicional para as mulheres, um grupo mais frágil e exposto à doença – ainda fruto de tradições anacrónicas e absurdas – até em situações de gravidez. daí que doentes e médicos europeus tenham dado as mãos para criar um programa de apoio e de educação especialmente dedicado às mulheres – o programa she (strong, hiv positive, empowered women, que significa mulheres seropositivas fortes e com poder, e que joga com o significado da palavra ‘she’, ‘ela’ em inglês).

o caso específico de margarida é espelho de muitos outros. «culturalmente, a mulher ainda é um pouco ‘deixa andar’», explica teresa branco, médica especialista em virologia no hospital fernando fonseca (amadora-sintra, arredores de lisboa) e coordenadora nacional do programa she. «quando gosta de alguém, o amor é como se fosse uma protecção». há anos que teresa branco se dedica às questões do vih em pacientes femininas. o desafio é maior, reconhece, porque as mulheres somam outros problemas ao da infecção por vih. por vezes, elas têm mais medo da discriminação do que da doença em si. «às vezes não têm capacidade económica para subsistir sem os companheiros, e a capacidade emocional de se afirmarem enquanto pessoas. é algo que vem do passado – somos muitas vezes dependentes do parceiro, de ter alguém ao nosso lado».

é mais fácil compreender, assim, a história de margarida e de muitas outras mulheres que não conseguem falar sobre a sua situação. e também a estratégia principal da primeira fase do programa she, que arrancou em maio e visa pôr frente-a-frente mulheres infectadas há muito – e que vão receber formação – com outras que entraram mais recentemente no universo da doença. numa segunda fase, a formação vai estender-se a médicos, com actualização científica e algumas particularidades relativas às mulheres com vih/sida. o projecto conta, até agora, com cinco hospitais, de norte a sul do país.

o conhecimento sobre a doença aumentou nos últimos anos, mas parece ter períodos de deriva. alguns são incompreensíveis, na era da informação global e instantânea: «por muito que se diga, parece que os conhecimentos sobre a doença não atingem a população de forma muito disseminada», completa teresa branco. «não há dúvida de que há cartazes, de vez em quando há campanhas, mas não são ainda para toda a gente». continuamos com a ideia errada de que é um mal dos ‘outros’ quando é dos outros que a vida é feita. mais uma vez, quem paga a dobrar são as mulheres, continua a médica. «têm medo de ser rejeitadas, de ser postas de lado, de ser mal julgadas. os maus costumes e a sida ainda estão muito associados». e há o medo do julgamento por promiscuidade ou de uma culpa mal repartida. só que «uma relação sexual é sempre uma coisa a dois. não há um ‘culpado’».

quase todas as mulheres são infectadas por via sexual com o seu parceiro fixo que, por sua vez, não sabe que está infectado. fazer o teste, hoje, é quase tão imperativo quanto a declaração de amor ou os jogos de sedução que acabam na cama. ao bouquet de rosas e às palavras ardentes devemos juntar uma análise ao vih: «as mulheres devem ter a noção de que precisam de ir fazer o teste e que os seus parceiros também», explica ainda teresa branco.

porém, o tratamento já é acessível e eficaz o suficiente para tornar o vih/sida uma doença crónica. algumas experiências de viver com o vírus acabaram por evoluir para terrenos mais positivos.

é o caso de maria henriques (nome fictício), que soube que estava infectada em 2006, provavelmente por um azar com poucas probabilidades de acontecer – teve uma relação breve oito anos antes com um parceiro que estava infectado, sem que nenhum deles soubesse. mas tomaram precauções, já que usaram o preservativo. o que correu mal, então? «o preservativo podia ter algum buraco e não demos por isso na altura».

maria estava separada do marido naquela época. entretanto, já tinha voltado a viver com o anterior marido, quando soube, pelos sinais típicos, que alguma coisa estava mal. perdeu peso, apanhou uma pneumonia, curou-se e passadas três semanas apanhou outra. foi aí que veio o diagnóstico. «ficámos um bocado espantados, eu e o meu marido. ninguém estava à espera disto», até porque a outra relação de maria durante o tempo de separação do marido não teria durado mais de um mês. quando acabou, nunca mais o tornou a ver, muito antes de saber que estava infectada.

ao contrário de muitas mulheres, maria obteve apoio do marido e dos filhos. só não contou aos pais, «são velhotes e achei que os devia poupar a isto». segue a rotina clássica dos medicamentos – são três por dia –, das análises e consultas regulares, e alegra-lhe a perspectiva de saber que a esperança média de vida dos pacientes com vih aumentou nos últimos anos. deitou mãos à vida: «faço e vou fazer tudo normalmente», sentencia, em jeito de conclusão.

muitas são as notícias que dão, com alguma regularidade, como certa a vacina para o vih. mas ainda não há luz ao fundo do túnel. aos infectados, pede-se-lhes rigor nos tratamentos. aos que não o estão, a palavra de ordem é prevenir, sublinha teresa branco.

ricardo.nabais@sol.pt