‘Inferno’ de Dan Brown nas livrarias: Tenham muito medo

Desde a semana passada nas livrarias portuguesas Inferno, de Dan Brown, é o acontecimento da temporada no negócio da venda de livros. De novo o escritor ressuscita o professor Robert Langdon e atira-o a Florença, com reminiscências de Dante à mistura.

durante quase dois meses, entre fevereiro e abril últimos, 11 tradutores estiveram fechados sete dias por semana num abrigo subterrâneo nos escritórios da editora italiana mondadori, arredores de milão. impedidos de usar telemóveis, qualquer suporte de notas ou ligações individuais à rede, com os computadores vigiados em permanência e apenas autorizados a frequentar a cantina das instalações sob identidades falsas, eram transportados todos os dias em carrinhas de alta segurança num único trajecto: entre a editora e o hotel onde pernoitavam. razão para tanto secretismo? cabia-lhes traduzir uma obra-prima? não, tinham em mãos um monumental fenómeno comercial e de marketing: o novo livro do norte-americano dan brown. lançado a 14 de maio nos eua, inglaterra, alemanha, frança, espanha, brasil e itália e agora em portugal, pela bertrand, o romance já arrasou as tabelas de vendas e fez aumentar as vendas da divina comédia de dante e a afluência turística a florença.

rápido, directo, visual. inferno é o sexto romance de dan brown e o quarto protagonizado por robert langdon, professor de simbologia e história de arte da universidade de harvard e alter ego do escritor norte-americano. depois de anjos e demónios (2000), o código da vinci (2003) e o símbolo perdido (2009), com mais de 200 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo e traduzidos para 52 línguas, dan brown continua a explorar a fórmula de thriller pseudo-erudito ou intelectual. desta vez, inspira-se em ‘inferno’, a primeira parte do poema épico e filosófico escrito pelo italiano dante alighieri (1265-1321), situa a acção em florença, veneza e istambul (a “las vegas do bósforo”) e explora temas como sobrepopulação do planeta, doenças pandémicas, bioterrorismo e organizações internacionais.

a pandemia de dan brown

no início da narrativa, langdon foi vítima de um atentado e sofre de amnésia retrógrada. não faz ideia da razão por que está em florença ou por que é perseguido até pelo seu próprio governo. no entanto, mantém uma “memória eidética” (fotográfica), sabe que transporta uma arma de destruição massiva no forro do seu casaco harris tweed e é assombrado por memórias de sonhos perturbadores, todas de algum modo relacionadas com o poema de dante – que obcecou o vilão da história e o inspirou a cometer suicídio, logo nas primeiras páginas. com a ajuda dos seus amplos conhecimentos e intuições e de uma jovem médica “alta e ágil”, com “olhos penetrantes” e um passado enigmático, o nosso herói levará a cabo uma fuga vertiginosa, mas bem sucedida. inferno, o menos documentado e mais pretensioso romance de dan brown, pretende ser uma parábola distópica sobre ética, avanços científicos e tecnológicos e futuro da humanidade. a moral desta história diz-nos que “os lugares mais tenebrosos do inferno estão reservados àqueles que mantêm a neutralidade em tempos de crise moral”. na última página de inferno, “a negação tornara-se uma pandemia planetária”.

dan brown, hoje com 49 anos, estudou escrita criativa no amherst college em massachusetts (onde a poeta emily dickinson terá assistido a algumas aulas) e na mesma classe de david foster wallace. todavia, ao contrário deste que é tido como o escritor norte-americano mais inovador do século xxi, brown nunca foi aclamado pela crítica ou pelas academias. é ponto assente entre os leitores e os círculos literários mais selectos (ou tão só entre aqueles que crêem sê-lo de facto) que os seus livros são gramatical, estilística e literariamente medíocres. exploram uma fórmula comercial apoiada na pesquisa prévia de uma série de lugares-comuns sobre determinados temas (neste caso, uma conjugação de pseudo-história, pseudo-ciência e pseudo-ocultismo), numa teoria da conspiração e num enigma central cuja resolução gradual alimenta a velocidade alucinante da acção. as personagens são estereotipadas e psicologicamente quase estéreis. em inferno, existe a “mulher misteriosa de cabelo cor de prata”, o “cliente de olhos verdes do consórcio”, o “homem da erupção cutânea e brinco de ouro com óculos plume paris”, a perseguidora vestida de negro e com uma arma com silenciador e o importante “preboste” (antigo comandante da polícia militar). quando conhece o atraente langdon, a jovem médica faz-nos suspeitar de que viveu algo traumático porque pensa: “ele nunca me iria querer. tenho defeito”. prestes a agir, as personagens “adopta[m] um ar determinado” e em momentos de expectativa “arfam de forma audível”. sem contemplações líricas ou ruminações psicologistas, os romances de dan brown estão mais próximos da má escrita de género do que da ficção literária com verdadeiro mérito e originalidade. então, porquê tanto sucesso?

cultura de wikipedia

uma crítica séria aos livros de dan brown tem de destacar que ele constrói os seus livros com base na supostamente muito fraca cultura geral e literária dos seus leitores. sejamos claros: não quero com isto dizer que os leitores de brown são forçosamente incultos. mas é fundamental destacar que dan brown os toma como tal, menorizando-os na sua agenda de escrita e guiando-se por essa menorização. só assim se explica que passe as páginas a explicar-lhes tudo: os propósitos das personagens, o significado das suas expressões verbais e físicas e das suas acções e todas as referências culturais, históricas, científicas ou tecnológicas que vão sendo feitas — ainda assim a informação veiculada é sempre básica (ex: “o cancro não passa de uma célula que começa a replicar-se descontroladamente”) e acessível através de uma mera consulta à wikipedia. pelo meio, sucedem-se as portas secretas e saídas impensáveis para as situações-limite nas quais o herói vai sendo encurralado. pretendendo ser pedagógico, inferno é programático, previsível, nada convincente e tresanda a demagogia. mas, admita-se, lê-se num ápice. é aditivo precisamente porque não requer qualquer tipo de exigência ou empenhamento na leitura e porque insiste nessa quase total ausência de ambição. ‘inferno’ de dante é uma obra-prima da literatura universal. inferno de dan brown é um verdadeiro pronto-a-ler. como no caso de um hamburguer no pão e de um soufllé de lagosta, fará algum sentido compará-los?

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