Inspetor-chefe da PJ denuncia diretor nacional

Inspetor-chefe da PJ, acusado por tráfico de droga na última semana, denunciou que o diretor nacional da PJ terá solicitado a legalização de uma imigrante ilegal a pedido de um informador. Esta situação e a descrição de crimes que acontecem dentro da PJ deixaram os procuradores e o juiz Carlos Alexandre estupefactos.

Há cerca de um ano estavam a ser detidos o antigo coordenador da Polícia Judiciária Dias Santos, o inspetor Ricardo Macedo e o cabo da GNR Baltazar Silva, suspeitos de tráfico de droga, associação criminosa e corrupção. Foi no início de abril de 2016.

Horas depois, dentro da sala do Tribunal Central de Instrução Criminal, onde estavam, além do juiz Carlos Alexandre, os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal João Melo e Lígia Salbany não paravam de chegar denúncias graves, que até hoje tinham ficado fechadas dentro daquelas quatro paredes. Partes desse interrogatório, que mais tarde acabaram por chegar ao conhecimento do Tribunal da Relação, no âmbito dos recursos apresentados pelos arguidos, revelam segredos, alegadas irregularidades cometidas pela direção nacional, benefícios que são dados a polícias detidos e a facilidade com que se entra dentro das instalações da PJ e se roubam 33 telemóveis que são a prova de um crime.

O juiz Carlos Alexandre não se terá contido e por mais de uma vez soltou: «Isto é uma vergonha». Mais calmo, o procurador João Melo também chegou a mostrar a sua surpresa perante muitas das respostas dos polícias suspeitos de terem relações privilegiadas com os traficantes e de os beneficiarem a troco de contrapartidas. O SOL conta o que foi dito pelos arguidos. Nos últimos dias foram acusadas 29 pessoas, no âmbito deste inquérito.

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O estranho pedido de legalização

Ricardo Macedo, o inspetor chefe da Polícia Judiciária que é uma das peças centrais na denominada Operação Aquiles, foi dos que contou mais detalhes surpreendentes durante o interrogatório. As primeiras perguntas feitas ao arguido centraram-se na sua ligação com o antigo coordenador Dias Santos, desde que ele saiu da PJ e sobre o desaparecimento de um carregamento de droga que estava previsto chegar a Portugal num contentor de ananases – episódio que esteve na origem da denúncia que levou a este inquérito.

Ricardo Macedo negou desde o início ter qualquer papel no desaparecimento da droga e defendeu que nunca dera informações privilegiadas a um dos seus informadores, conhecido como Gordo, sobre esta matéria, apesar de o MP o confrontar com alguns detalhes que demonstram que o tal Gordo tinha informações detalhadas e sigilosas, nomeadamente sobre uma operação dos americanos da Drug Enforcement Administration (DEA), que viria a acontecer uns dias depois.

Numa das respostas que foi dando ao Ministério Público, sobre o facto de o seu informador não estar registado e de simultaneamente estar a ser investigado pela PJ, Macedo admitiu que no ano de 2013 chegou a ter em mãos parte de uma investigação ao seu informador – que tinha ligações a traficantes. Ao mesmo tempo que o investigava, continuava a encontrar-se com ele para trocarem informações.

A conclusão dessa investigação foi referida pelo procurador João Melo: o inquérito foi dado como inconclusivo e Macedo por despacho propôs a destruição das escutas. Confrontado, o inspetor-chefe disse ser normal o que fez.

Mas não é e o juiz Carlos Alexandre não perdeu a oportunidade para interromper: «Está na leizinha, não se destrói nada, só com o trânsito em julgado ou com uma prescrição».

A suposta promiscuidade entre investigadores e informadores, na maioria dos casos envolvidos em negócios de droga, dominava a sessão, mas a sala gelou quando, após ser ouvida uma escuta, o inspetor-chefe implicou o atual diretor Nacional da Polícia Judiciária, Almeida Rodrigues.

A chamada em questão era de maio de 2016 e tratava-se de uma conversa com Joaquim Henriques, que também era informador e vive em Espanha, segundo Macedo.

Quando foi chamado a explicar a sua ligação com aquele indivíduo, o inspetor-chefe da Polícia Judiciária identificou o informador como sendo uma pessoa que «deu» um serviço: uma embarcação com cocaína. Explicou, porém, que como contrapartida não quis dinheiro, mas sim a legalização de uma cidadã estrangeira que estava na Europa ilegal e com quem vivia.

Já tinha passado mais de duas horas desde o início da diligência. O juiz Carlos Alexandre questionou de imediato como é que se legalizam pessoas como contrapartida, perguntando diretamente se Ricardo Macedo tinha proposto ao SEF tal legalização ou se de outra forma.

«Eu não, quem propôs foi a direção da Polícia», respondeu o inspetor da Judiciária.

Carlos Alexandre surpreende-se com a resposta e diz de rajada: «Isto vai até onde tiver de ir, se depender de mim, mas não depende».

«Foi o Joaquim Pereira», retorquiu mais à frente Ricardo Macedo corrigindo de seguida: «Terá sido o senhor diretor nacional a assinar o pedido».

O juiz, incrédulo, insiste: «O doutor Almeida Rodrigues a assinar um pedido para que uma cidadã brasileira ficasse cidadã nacional por conta de uma troca, uma compensação de o senhor ter dado um bom serviço à polícia?».

«Sim», confirma Macedo perante a surpresa de todos na sala. O magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal remata de forma efusiva: «Não me revejo em nada disso».

O SOL contactou ontem o diretor nacional da Polícia Judiciária. Questionado sobre o seu conhecimento ou o da Direção Nacional de possíveis contrapartidas não monetárias e que não respeitem a lei, como favorecimentos ou agilizações de processos, Almeida Rodrigues disse ser «absolutamente falso»: «O combate ao crime é feito com determinação, mas dentro da lei».

Questionada sobre se foi extraída alguma certidão ou existe alguma investigação em curso que vise Almeida Rodrigues, a Procuradoria-Geral da República disse apenas que «com os elementos fornecidos, até ao momento, não foi localizado qualquer inquérito».

Crimes nos corredores da PJ

No interrogatório de Ricardo Macedo já tinha ficado a ideia de que existiria um grupo dentro da Polícia que se sentia impune para fintar a lei, mas o SOL sabe que durante uma conversa telefónica entre Macedo e um colega chegou a gozar-se com o facto de ter borregado uma operação conjunta com as autoridades espanholas.

Mas no interrogatório do antigo coordenador de investigação criminal Dias Santos essa ideia reforçou-se. O MP confrontou o suspeito com o facto de após uma das denunciantes do esquema – companheira de um dos referenciados internacionalmente – ter feito participação por violência doméstica e tráfico à PJ ter sido entregue uma cópia das suas declarações, de forma irregular, ao denunciado – Jorge Manero.

E apesar de Manero ser informador de Dias Santos, o coordenador reformado negou ter sido ele a passar essa informação em 2008, antes de sair da PJ.

«Todas as pessoas da Direção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes (DCITE) podiam entrar na sua secção e consultar os processos que andavam pelo chão, ou pelos armários ou secretárias?», terá questionado Carlos Alexandre.

«Sôtor, as portas estavam sempre abertas», respondeu o suspeito .

«Por isso é que desapareceram os telemóveis», continuou o magistrado, lembrando um episódio anterior em que meios de prova contra traficantes por pouco não se perderam.

A partir daí, Dias Santos ainda questionou se não teria sido a mulher que se queixara de violência doméstica (preferimos não identificar por motivos de segurança), a ceder cópia a Manero. O juiz de instrução exaltou-se com a possibilidade avançada, avançando que nenhuma vítima de violência doméstica iria entregar uma cópia ao alegado agressor.

A história dos telemóveis desaparecidos não é completamente desconhecida, o SOL havia publicado que em 2014 desapareceram do interior da PJ diversos aparelhos no âmbito de uma investigação a traficantes. A responsável pelo roubo acabou por ser localizada: era uma empregada da limpeza que apesar de trabalhar na PJ estava ilegal e disse pensar que os aparelhos eram para ir para o lixo – foi acusada dos crimes de descaminho de bens colocados sob o poder público, falsificação de documentos, falsidade, falsidade de testemunho e falsas declarações. O seu cúmplice por recetação.

O que este interrogatório trouxe de verdadeiramente novo é que o desaparecimento de provas fundamentais, como telemóveis, já terá acontecido mais vezes dentro das quatro paredes da Polícia Judiciária.

«Ainda bem que a senhora foi presa», afirmou Ricardo Macedo, garantindo que, mais do que estar a investigar uma pessoa que simultaneamente era seu informador, era este roubo que o preocupava.

«Falta saber a mando de quem [é que a senhora da limpeza tirou de lá os telemóveis]. Aquilo cheira tão mal…», atirou o procurador João Melo.

«Eu não fui», apressou-se a responder Ricardo Macedo.

«É uma vergonha», interrompeu o procurador João Melo.

Para tentar desvalorizar o sucedido, o suspeito diz o que ali ninguém sabia: «Mas isso acontece mais vezes».

«Desaparecerem [outros] telefones da Unidade de Telecomunicações e Informática (UTI)??», questionam em uníssono os investigadores, não poupando nas críticas de seguida: «Então já deviam ter aberto um inquérito».

Após um momento de confusão em que todos falavam ao mesmo tempo, os magistrados do DCIAP confessam que em dezenas de anos de magistratura nunca tinham visto nada assim, sobretudo porque os aparelhos estavam num local reservado aos inspetores, prestes a ser analisados, onde ainda assim a empregada da limpeza, ilegal, tinha acesso.

Perante a alegada falta de rigor na segurança e na contratação de pessoal, a procuradora Lígia Salbany chega mesmo a alertar para outros perigos, como o do terrorismo.

Polícias com regalias na prisão

A alegada promiscuidade de algumas pessoas dentro das polícias – PJ e GNR – verificou-se mesmo depois de deflagrar a Operação Aquiles, uma vez que os detidos mantiveram contacto quando estavam presos e um deles teve até direito a fazer chamadas de madrugada para casa.

Segundo uma investigação do SOL, no Estabelecimento Prisional anexo à PJ perto de uma dezena de detidos mantiveram contacto, enquanto que no posto da GNR da Malveira, o Cabo Silva teve direito a fazer chamadas da central telefónica e do telemóvel de um colega.

A investigação tomou conhecimento destas situações poucas horas depois e na documentação enviada para a Relação no âmbito dos recursos apresentados percebe-se que Carlos Alexandre não terá gostado do que viu: «É uma situação inqualificável num país civilizado». Num despacho que terá enviado para a ministra da Administração Interna, para a ministra da Justiça, para a PGR e para o Comando Geral da GNR, o juiz arrasa tais episódios, afirmando que os mesmos concorrem «para que não se possa equacionar qualquer simulacro da realização da justiça».