iRegret

Não seríamos humanos sem o sentimento de culpa. Recrimino-me por números de telefone que perdi, obrigações que não tratei, papelada de que me esqueci. Outra noite sonhei com uma nova rede social. Um ponto de encontro para gente à procura de redenção.

o faltoso cria o seu perfil onde explica a quem falhou. na busca pela segunda oportunidade, existe esperança: para estes e os seus credores. uma rede online de deve e haver, onde uns e outros se procuram… na fé de que o sinalagma termine em perdão. imagino os banners publicitários: bancos, seguradoras, imobiliárias, no fundo todos aqueles que prometeram muito mais do que sabiam poder cumprir. ‘e esta, hein?’.

ii – dona celeste e os livros

como é suposto as paredes terem ouvidos, pelo sim pelo não, tapo-as. com livros. ainda não é bem a biblioteca do meu pai, símbolo da maioridade para a minha infância, testemunho do tempo aparentemente infinito que me faltava viver para ser ‘grande’, mas é um bom começo.

o branco das paredes vai sendo consumido pela miríade de cores presentes nas lombadas avulsas. ou talvez não sejam assim tão desconexas. volta e meia gosto de organizar os livros – embora segundo critérios esquizofrénicos: a poesia no quarto, o teatro no escritório, livros técnicos na arrecadação, o humor na casa de banho (impede-o de alguma vez se levar a sério), e contos, romances e novelas organizados de acordo com o emparelhamento cómico/bizarro/subversivo dos títulos. há casais improváveis, como lobo antunes/saramago, pulido valente/sousa tavares ou kafka/kerouac.

e depois há o critério da dona celeste, excelente e amável empregada doméstica, uma visita quinzenal cujo único ‘defeito’ – claro destoar numa disciplina em tudo o resto férrea – é o de insistir em desalinhar-me os livros no intuito de livrá-los do pó. e de repente lá está o único factor verdadeiramente organizado na vida do escriba igual à restante desordem. chego a casa e é como se gaudí tivesse dado um jeito ao lar, um upgrade de autor onde as paredes parecem agora trémulas como um boca doce, desafiando leis da gravidade e a paciência do hóspede.

vez após outra, realinho todos os livros de novo. impecavelmente paralelos e sem espaço em cada estante para um ensaiozinho mais que seja. e subitamente ocorre-me que, na verdade, d. celeste planeou tudo. é uma estratégia, um método que me obriga a entender, cada vez que torno a agrupar uma por uma milhares de obras, que – por muito que viva – jamais irei a tempo de as ler a todas. são mais os livros a entrar em casa do que aqueles a que a leitura consegue dar vazão. assim, d. celeste dá-me a oportunidade regular de fazer uma pré-selecção cada vez mais afunilada. sim, está na altura de readaptar os critérios ou mudar-me para uma casa maior. é urgente uma divisão especial cujas paredes serão preenchidas com os livros que terei absolutamente de ler antes de.

iii – num prato da balança

o paraíso, no outro a dignidade

quanto pesa a dignidade? dou por mim a pensar no assunto com cada vez mais regularidade. o motivo? convites para actuar sem cachet, vulgo trabalhar de graça. faço-o amiúde, diga-se de passagem, mas tento ter critério. honra-me poder ajudar instituições ou causas como a sociedade portuguesa de esclerose múltipla ou o centro para vítimas de paralisia cerebral em beja. são o tipo de situações onde é absolutamente impossível dizer ‘não’. tão simples quanto isso.

mas, sobretudo com o triunfo das redes sociais, dou comigo em alhadas onde apetece desatar a cantarolar o jingle de um antigo anúncio: ‘você abusou / tirou partido de mim / abusou’. por exemplo, vou frequentemente – com todo o gosto – falar/actuar em escolas, sobretudo quando o convite é feito de forma amável e interessada. recordo uma recente palestra no ismai num excelente auditório perfeitamente lotado, ou um grupo de alunos do 12.º ano que me pediram para ser entrevistado pelos próprios, na sua sala de aula nos arredores de mafra, no âmbito de um trabalho final. agora outra coisa completamente diferente é quando rapazes avulsos de associações de estudantes me escrevem tu-cá-tu-lá no facebook porque gostavam de ter lá um fulano para ‘contar umas piadas’ e ganhar as eleições (parte raramente assumida); e esperam, calculo, que o pagamento pelo tempo e esforço seja por mim recebido na forma de palmadinhas nas costas e gratidão mais ou menos manhosa. meus caros, como dizia o outro, ‘à vontade não é à vontadinha’.

assim, e nos pratos da balança metafórica que pesa o trabalho gratuito, de um lado está a necessidade de contribuir para alcançar um lugarejo no paraíso, do outro encontra-se a dignidade. ainda não sei bem quantos quilos tem a minha mas, para contrabalançar, convém que passem a colocar no respectivo prato umas doses valentes de boa educação e, já agora, géneros – nem que sejam uns quantos bons livros. sim, livros. são uns objectos constituídos por centenas de páginas com palavras impressas, feitos de papel, e aparentemente não vos fazem falta nenhuma.

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