Jornalistas

É hoje relativamente normal ver nas televisões os convidados tratarem os entrevistadores pelo nome.

«Oh Mário isto…», «Oh Judite aquilo…», «Oh José Alberto aqueloutro…». E os jornalistas acham-se honrados com este tratamento, que mostra simpatia ou mesmo alguma estima por parte dos entrevistados. Os jornalistas sentem-se reconfortados pelo facto de os convidados, muitas vezes pessoas importantes, terem a deferência de os tratarem pelos nomes próprios.

Percebo que se sintam assim. Mas estão a menorizar-se. A verdade é que, tratando-os dessa maneira, os entrevistados colocam-nos num plano inferior. E os jornalistas aceitam a situação. Porque nunca lhes passaria pela cabeça dizer «Oh Ricardo isto…», quando estão a entrevistar o presidente do Grupo Espírito Santo, ou «Oh José aquilo…», quando entrevistam o primeiro-ministro.

O tratamento familiar dos entrevistadores por parte dos entrevistados, além de quebrar a desejável distância que deve existir entre uns e outros, cria uma situação desigual pois não permite a reciprocidade.

De certo modo, o entrevistado trata o jornalista como trataria um funcionário seu: «Oh Miguel isto…», «Oh Carla aquilo…».

Claro que nem todos os empresários nem todos os políticos tratam os jornalistas assim. Nunca vi Cavaco Silva, Álvaro Cunhal ou Ramalho Eanes estabelecerem relações de demasiada proximidade com os entrevistadores.

Numa ocasião, estando eu (com Margarida Marante) a entrevistar Cunhal na RTP, este tratou-me sempre por «senhor director-interino do Expresso». Como constatei depois, muitos telespectadores viram nesse tratamento uma forma irónica de ‘rebaixar’ o entrevistador, sublinhando o facto de não ser director de corpo inteiro.

Ora o que se passou é que, na troca de impressões nos minutos que antecederam a entrevista, o líder do PCP fez–me uma pergunta sobre a minha recente nomeação para director do Expresso. E eu desvalorizei o facto, visto que a minha intenção nessa altura era continuar a exercer a profissão de arquitecto – vendo, portanto, essa nomeação como transitória. Assim, quando Cunhal falou em «director do Expresso», eu corrigi-o e disse: «Director não, director-interino!». E ele, que era uma pessoa bastante formal, usou depois sempre esse modo de tratamento durante a entrevista.

Mas por aqui se vê a distância que se mantinha sempre entre entrevistador e entrevistado, e vice-versa.

Cavaco Silva, nesse aspecto, é bastante parecido com o ex-líder comunista. Numa das entrevistas que lhe fiz, informei previamente o seu gabinete que iria comigo o então director-adjunto, Joaquim Vieira. Ele, porém, reagiu mal. Não percebia por que razão, tendo-o eu entrevistado várias vezes sozinho, me fazia agora acompanhar por outra pessoa. Eu insisti, ele resistiu, mas lá acabou por ceder.

Estava previsto o meu colega chegar às 8h30, mas atrasou-se um pouco. Eu comecei por trocar umas palavras com Cavaco (das quais falarei noutra crónica, porque têm valor histórico) e, a páginas tantas, ele disse-me que podíamos iniciar a entrevista. Mas eu reagi. Lembrei-lhe que faltava o meu colega – e que devíamos aguardar a sua chegada. Cavaco dispôs-se a esperar, fazendo no entanto notar a sua impaciência.

Passados uns cinco minutos, voltou a insistir comigo para começar a entrevista – e eu voltei a dizer-lhe que esperava o meu colega. Ficámos então mais uns minutos em silêncio, que pareceram nunca mais acabar. Por fim, dirigindo-se-me directamente, Cavaco perguntou:

– O senhor jornalista recusa-se a começar a entrevista?

Fiquei sem saber o que responder. Já o conhecia relativamente bem – e ele falava-me como se nunca nos tivéssemos visto. Felizmente nesse preciso momento tocou o telefone: era da portaria a informarem que tinha chegado um jornalista de nome Joaquim Vieira. Foi um enorme alívio!

Cavaco Silva é o tipo de político que não estabelece com os jornalistas qualquer tipo de cumplicidade. Durante o tempo em que foi primeiro-ministro tivemos vários encontros, sempre na sua residência em S. Bento, mas apenas falámos duas vezes pelo telefone – enquanto com outros primeiros-ministros, como Guterres ou Durão Barroso, eu falava pelo menos uma vez por semana.

Aliás, nesse período de dez anos, nunca passei da zona oficial da residência. Ora, da primeira vez que lá fui depois de Guterres ter sido eleito para a chefia do Governo, este andou gentilmente a mostrar-me toda a zona privada da casa (onde Salazar e Cavaco viveram) e até os jardins, dizendo-me a brincar: «Quando quiser pode vir aqui de toalha ao ombro e tomar banho na piscina».

São, definitivamente, estilos diferentes. E se Cavaco era (é) por vezes demasiado formal, outros são excessivamente informais, o que também não é bom e gera equívocos.

Mas da parte dos jornalistas também há que saber preservar as distâncias. Os jornalistas da TV não devem sentir-se honrados quando os entrevistados os tratam pelos nomes, como expliquei atrás. A propósito, recordo um episódio ocorrido entre mim e Margarida Marante, há vários anos.

Um belo dia pediu-me uma entrevista a incluir numa série que estava a fazer para a revista do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias. Marquei a entrevista para minha casa, onde estaríamos mais à vontade e não seríamos interrompidos. Ela entrou, sentou-se num sofá e começámos a conversar. Eu conhecia-a há muitos anos, tínhamos trabalhado juntos, havendo portanto bastante familiaridade entre nós. A certa altura da conversa, ela propôs que começássemos a entrevista – e eu convidei-a a fazer a primeira pergunta. Aí, ela observou:

– Se não te importas, vamos ali para a mesa, porque eu entendo que nas entrevistas deve haver um certo formalismo. E não te espantes por não te tratar por tu. É que a partir de agora eu sou a jornalista e tu o entrevistado.

Concordei em absoluto. Assim é que as coisas devem ser. A falta de distância entre entrevistados e entrevistadores não é saudável para ninguém. Mesmo que os jornalistas (ou os entrevistados) se sintam honrados com isso.

jas@sol.pt