Joyland. O filme paquistanês que o Paquistão proibiu mas agora libertou

É candidato do Paquistão a uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Internacional e conta a história de amor entre um rapaz e uma mulher trans. ‘Joyland’ foi banido a semana passada por alegadamente contrariar os valores sociais do Islão e do país, depois de em agosto, o país ter dado luz verde para a exibição do…

No coração de Lahore, cidade metropolitana e conservadora, vive a família Rana, um núcleo de classe média-baixa patriarcal e feliz, que anseia pelo nascimento de um menino para continuar a linhagem familiar. É então que o seu filho mais novo Haider – protagonizado pelo ator Ali Junejo –, casado, passa a trabalhar secretamente com dança erótica, acabando por se apaixonar pela ambiciosa estrela trans, Biba – a quem a atriz Alina Khan dá vida. A relação dos dois expõe a hipocrisia dos relacionamentos numa família com membros de diferentes gerações, onde a sexualidade é um tabu e há o choque entre a modernidade e a tradição. “Essa história de amor impossível ilumina lentamente o desejo de rebelião sexual de toda a família”, lê-se na sinopse de Joylan, do realizador paquistanês Saim Sadiq.

Elogiado pela crítica, premiado com o Prémio do Júri em Cannes, conquistando o Un Certain Regard Jury Prize e o Queer Palm Awards e ainda indicado como candidato do Paquistão ao Óscar de Melhor Filme Internacional, o filme estava programado para estrear nos cinemas de todo o país na sexta-feira, 18 de novembro – Joyland também arrecadou a Menção Especial e o Prémio do Público na mais recente edição do Queer Lisboa.

A produção recebeu luz verde do conselho de censura do governo do Paquistão em agosto, mas voltou atrás depois de ter explodido uma campanha contra o filme, de acordo com o The Guardian, “liderada pelos religiosos da linha dura do país e poderosos partidos islâmicos de direita, incluindo o movimento islâmico Jamaat-e-Islami”. O senador Mushtaq Ahmed Khan, por exemplo, acusou o filme de promover a homossexualidade, que continua ilegal no Paquistão, e de ser “contra os valores paquistaneses”.

 

O cancelamento do filme

Por isso, na semana passada, o Ministério da Informação e Radiodifusão do Paquistão acabou por intervir, emitindo um veto que declarou o filme “repugnante às normas de decência e moralidade”. “Foram recebidas reclamações por escrito de que o filme contém material altamente censurável que não está em conformidade com os valores sociais e padrões morais da nossa sociedade e é claramente repugnante às normas de ‘decência e moralidade’, conforme estabelecido na Secção 9 da Portaria de Cinema, 1979”, afirmava a ordem do Ministério da Informação e Radiodifusão do Paquistão, datada de 11 de novembro. “Agora, portanto, no exercício dos poderes conferidos pela Secção 9 da referida Portaria e após a realização de uma ampla investigação, o Governo Federal declara a longa-metragem intitulada Joyland como um filme não certificado para todo o Paquistão nos cinemas que estão sob a jurisdição da CBFC com efeito imediato”, acrescentava. De acordo com o jornal britânico, a proibição colocava em risco a chance do filme aos Óscares, pois é condição de inscrição que o filme seja exibido no seu país de origem.

Descrevendo a decisão do Ministério da Informação e Radiodifusão de banir Joyland como uma “reviravolta repentina” e “absolutamente inconstitucional e ilegal”, o realizador e a equipa do filme preparam um apelo. Em resposta à proibição, Sadiq chegou mesmo a divulgar uma nota na sua conta do Instagram, afirmando que a reversão da proibição era “inconstitucional” e “ilegal”. A Associação de Produtores de Cinema do Paquistão também começou a fazer pressão para que a proibição fosse anulada.

Após a proibição, também celebridades e profissionais dos media atacaram a restrição das artes e do tema do filme, pedindo o seu lançamento sob a hashtag #ReleaseJoyland , que depressa virou tendência. “É como dar dois passos para trás toda vez que avançamos”, comentou Kami Sid, modelo e ativista trans, na quarta-feira. “Estou triste pelo meu país, pela indústria cinematográfica e, acima de tudo, pela comunidade transgénero”, acrescentou.

Além disso, sobre os dois prémios que recebeu em Cannes, a atriz confidenciou que ao ser aplaudida de pé, as lágrimas lhe escorriam pelo rosto: “Não sei se as lágrimas foram de alegria, por todo o trabalho duro que fiz ou pelas minhas lutas desde criança que continuam”, explicou Khan, que estreou nas telas de cinema com a curta-metragem, Darling, em 2019. “Pela primeira vez na vida, senti que o meu talento se sobrepôs ao meu género, recebi muito respeito”, acrescentou, revelando ainda que depois de tanto sucesso internacional, a sua família finalmente a recebeu de braços abertos. “Finalmente aceitaram-me. Perceberam que eu não ganho o dinheiro mendigando ou fazendo trabalho sexual”. A verdade é que, embora os seus direitos sejam protegidos por lei, a maioria das pessoas trans no Paquistão é forçada a viver à margem da sociedade, muitas vezes pedindo dinheiro na rua, dançando em casamentos ou prostituindo-se para sobreviver.

Por sua vez, a estrela transgénero, Alina Khan, admitiu ter ficado muito triste com a decisão do Governo de banir o filme e afirmou esperar que a decisão fosse revertida: “Estou muito triste. Não há nada contra o Islão e não entendo como é que isto pode acontecer com meros filmes”, disse ao The Guardian. “A comunidade trans paquistanesa também ficou muito chateada”, acrescentou a jovem de 24 anos.

Já Sarwat Gilani, outra atriz do filme, manifestou-se contra aquilo que alegou ser uma campanha de difamação paga por “algumas pessoas maliciosas que nem viram o filme”: “É uma pena que um filme paquistanês feito por 200 paquistaneses ao longo de seis anos, que foi aplaudido de pé de Toronto a Cannes, esteja a ser prejudicado no seu próprio país”, disse Gilani. “Não tirem esse momento de orgulho e alegria do nosso povo”, pediu.

 

A segunda reviravolta

Depois de toda a onda de descontentamento da qual também fez parte a Amnistia Internacional, que, num comunicado emitido por Nadia Rahman, investigadora e assessora de políticas de género da organização, considerou que a proibição do filme “ocorre num cenário em que o direito à liberdade de expressão e os já limitados direitos das pessoas trans estão sob crescente ameaça no país”; ontem, Muhammad Tahir Hassan, chefe do Conselho Central de Censores de Cinema, disse à AFP que “já não há impedimento do conselho para a sua exibição”. “Os distribuidores podem exibir o filme a partir de amanhã de manhã, se quiserem”, acrescentou.

Ao invés de o cancelarem, apenas algumas partes do filme serão cortadas. Salman Sufi, assessor do primeiro-ministro Shahbaz Sharif, disse à Associated Press que a decisão de suspender a proibição foi tomada por um comité formado pelo primeiro-ministro para avaliar o filme. “O conselho aprovou o filme com pequenos cortes”, anunciou. “A decisão é uma mensagem simples, mas poderosa, de que o Governo defende a liberdade de expressão e protegê-la, e, por isso, não pode permitir que meras campanhas de difamação ou desinformação sejam usadas para sufocar a liberdade criativa”, acrescentou.

Apesar disso, Sufi não detalhou quais cenas seriam cortadas. “As pessoas transexuais são tão cidadãs do Paquistão quanto qualquer outra pessoa”, sublinhou. “Também lançámos uma linha direta para os seus problemas no gabinete do primeiro-ministro e o primeiro-ministro está totalmente comprometido em proteger os seus direitos”, rematou.