Jugoslávia. Uma guerra que acaba agora em tribunal com a sentença de Ratko Mladic

O TPIJ anunciará hoje se o general sérvio Ratko Mladic, acusado de crimes de guerra e contra a humanidade, é inocente ou culpado

O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) anunciará hoje o veredicto do julgamento do ex-general sérvio Ratko Mladic, o “Carniceiro da Bósnia”, por crimes de guerra e contra a humanidade durante a guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995. Mais de 25 anos passados desde o maior genocídio em solo europeu desde a II Guerra Mundial, o fim do julgamento de um dos principais responsáveis militares sérvios representará um marco na história do conflito.

O ex-comandante Mladic é acusado de 11 crimes de guerra e contra a humanidade, entre os quais se incluem a ordem de bombardeamento contra Sarajevo, capital da Bósnia, e a execução de mais de oito mil bósnios muçulmanos em Srebrenica, em julho de 1995, um dos acontecimentos mais sangrentos e chocantes de todo o conflito. Os procuradores pedem a prisão perpétua para o ex-militar sérvio.

Além da gravidade das acusações, o julgamento do general é juridicamente importante por desempenhar um papel histórico na condenação por crimes de violência sexual, produzindo jurisprudência na lei internacional. Mladic é acusado de ter ordenado e praticado violações, agressões sexuais, tortura e tratamento cruel contra civis, principalmente mulheres e crianças, violando a Convenção de Genebra de 1949.

O comandante sérvio Ratko Mladic nasceu a 12 de março de 1942, em plena ocupação da Jugoslávia pelas forças nazis de Adolf Hitler, em Bozinovici, na Bósnia Oriental. Ironicamente, “Ratko” significa em sérvio, simultaneamente, guerra e paz, nome que normalmente é dado a crianças do sexo masculino que nascem em períodos de guerra, de acordo com a tradição sérvia.

Quando ainda era criança, Mladic confrontou-se com a morte do pai às mãos da Ustash, o regime fascista croata na II Guerra Mundial. Esta perda não o impediu de seguir a carreira militar, tendo mais tarde ingressado nas forças armadas do regime jugoslavo de Josip Tito, subindo, gradualmente, na hierarquia militar. O militar sérvio assumiu um enorme protagonismo a partir de junho de 1991 com o desmembramento da ex–Jugoslávia, ao ser nomeado para organizar o exército dominado pelos sérvios na Croácia, sendo depois escolhido para comandar as forças bósnias-sérvias com o objetivo de unir os territórios sérvios ocidental e oriental. Durante o seu comando, Mladic liderou o cerco de 44 meses a Sarajevo, causando a morte a pelo menos dez mil pessoas, e executou oito mil bósnios muçulmanos em Srebrenica, em 1995, de forma metódica, com o intuito de proceder a uma limpeza étnica para libertar os territórios de não sérvios. O militar defendia a criação de uma “Grande Sérvia” com um Estado único etnicamente puro.

Incapaz de lidar com o peso das acusações de que o pai era alvo, a filha do general, Ana, cometeu suicídio a 24 de março de 1994, em Belgrado, com a pistola favorita do pai.

Poucos meses antes do fim do conflito, o TPIJ constituiu o general arguido sob acusações de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Contudo, Mladic conseguiu escapar à justiça internacional durante anos, escondendo-se no seu antigo bunker de comando, mas a queda da sua popularidade entre a classe política sérvia dificultou–lhe os movimentos e, em 1997, foi demitido das forças armadas sérvias, perdendo a proteção governamental. Em maio de 2011 foi finalmente detido numa casa no norte da Sérvia e transferido para Haia.

O seu julgamento começou nesse mesmo ano, tendo o arguido recusado todas as acusações, chamando-lhes “monstruosas”. Ao longo dos cinco anos de julgamento, a defesa apresentou não menos que 950 moções para travar o tribunal, incluindo moções a exigir a remoção dos juízes. Apesar das tentativas, o julgamento continuou. Ontem, o procurador apresentou os seus argumentos finais e, hoje, o tribunal anunciará o veredicto.

O Tribunal Constituído pelas Nações Unidas em 1993, o TPIJ foi a primeira instituição judicial formada depois dos julgamentos de Nuremberga e Tóquio para julgar crimes de guerra e contra a humanidade. Ao longo dos seus 25 anos de serviço, julgou mais de 80 militares sérvios, condenando a grande maioria a penas de prisão, inclusive perpétuas. Entre eles estão Vujadin Popovic e Ljubisa Beara, condenados a prisão perpétua, e Milomir Stakic e Radovan Karadzic, condenados a 40 anos de prisão, pelos crimes de genocídio, deportação e atos de violência contra a população civil para espalhar o terror. O Tribunal também foi o responsável por julgar o primeiro chefe de Estado por crimes de guerra, designadamente o presidente sérvio Slobodan Milosevic. O julgamento de Mladic representa também o fim do mandato do tribunal. “O ICTY [sigla em inglês] vai encerrar sem fugitivos notáveis por crimes fundamentais”, disse o juiz Carmel Agius, presidente do tribunal, à Assembleia-Geral das Nações Unidas. “O tribunal foi o primeiro a abordar de forma abrangente a violência sexual relacionada com o conflito”, complementou.

Este é precisamente um dos marcos do trabalho do TPIJ, que comprovou que os líderes militares sérvios utilizaram a violação como instrumento de terror deliberado. Neste crime, o julgamento de Kvocka e outros assume um lugar de destaque por ter estabelecido a existência de uma “orgia infernal de perseguição” nos campos de Omarska, Keraterm e Trnopolje, no norte da Bósnia.

Não ficaram impunes A lei internacional relativa a agressões sexuais e violações tem feito um longo e lento percurso. A Convenção de Haia de 1907 foi o primeiro tratado internacional a proibir explicitamente a violência sexual, mas não conseguiu terminar com a impunidade para estes crimes. Por exemplo, aquando do julgamento dos dirigentes nacionais-socialistas em Nuremberga, depois do término da II Guerra Mundial, não foram expressadas acusações por crimes de violência sexual quando, durante o conflito, esta se tornou um instrumento de guerra e de terror contra as populações civis. O mesmo se passou nos julgamentos de Tóquio, em que os militares japoneses foram julgados, ignorando a escravatura de centenas de milhares de mulheres sul-coreanas para desempenharem o papel de “mulheres de conforto” dos soldados nipónicos durante o conflito.

Ainda assim, a Convenção de Genebra de 1949 endureceu a moldura penal contra crimes de violência sexual, declarando que “as mulheres devem ser especialmente protegidas” contra “violações, prostituição forçada ou qualquer outra forma de agressão sexual”. A violência sexual foi, ao longo da História, encarada como danos colaterais das populações civis da potência militar oposta, assumindo-se, não poucas vezes, como um instrumento militar propositado para intimidar e espalhar o terror, ocorrendo em checkpoints, locais de detenção, campos de refugiados, ruas, casas, etc. Porém, o julgamento de Mladic, que se junta ao de condenados por crimes do mesmo âmbito, como de Dusko Tadic, Mucic, Furundzija, Kunarac e Krstic, representa um avanço no combate à impunidade dos perpetradores de crimes de violência sexual, ainda que estes continuem a ser bastante comuns nos vários conflitos bélicos que decorrem nos dias de hoje.